No ensino fundamental eu tive um professor de História que mudou minha vida. A gente nunca esquece daquele primeiro professor incrível que faz cair por terra tudo que a gente pensava do mundo pra olhar pro passado (e, consequentemente, pra realidade) de um jeito diferente. Foi o primeiro professor que falou com todas as letras que nossa independência não foi bonitinha e muito menos heroica, foi ele que desmitificou Dom Pedro e um tanto de outros personagens dos nossos livros, foi ele que mostrou a história de acordo com uma perspectiva marxiana, mesmo que a gente só fosse saber de verdade quem foi o velho barbudo anos depois. Não vou entrar aqui no mérito de discutir se isso foi bom ou ruim do ponto de vista ideológico, mas estou reconhecendo que foi importante. E eu, é claro, pirava nas aulas e até mesmo para prova de Sociologia da faculdade usei as anotações que fiz nas aulas dele cinco anos antes para me ajudar.
Só que esse professor não gostava de Faustão. Isso parece banal hoje em dia em que ninguém gosta de Faustão, mas lá em 2006 o Pereira não gostar de Faustão era uma espécie de mito na escola, tinha até comunidade no Orkut falando que ele assistia escondido. Em todo exemplo de coisa ruim que ele dizia em sala de aula o programa do Faustão era usado de parâmetro e ele repetia incansavelmente aquele discurso de que a televisão nos deixa burros muito burros demais, que hoje a gente já cansou de ouvir. Aquilo era uma novidade pra mim na época, eu ali com meus 12 anos tendo o Domingão do Faustão como parte da minha rotina dominical, a gente achava ótimo que a aula de Artes era sempre no primeiro horário de segunda, porque aí podíamos comentar sobre a Dança dos Famosos do dia anterior e esse tipo de coisa. E pra mim, o professor repetir em todas as aulas que aquilo era um lixo não era nada mais que o Pereira sendo chato, muito chato. Qual era a necessidade daquilo?, eu pensava ali com os meus botões de quem adorava o Faustão em véspera de estreia de novela nova só pra ver todo o elenco reunido, era exagero de gente chata pensar que a audiência do Faustão era responsável pelos problemas do nosso país.
Hoje, no entanto, eu vejo que o meu professor tinha um bocado de razão. Hoje, na verdade, eu dificilmente consigo assistir Faustão e fico pensando se o incômodo que eu sinto hoje é parecido com o dele na época. E não, eu não sou fatalista adorniana cega que acha que quem vê TV ou consome qualquer coisa comercial é automaticamente burro e ignorante, mas eu não ia querer criar meus filhos diante daquilo. Eu poderia até mesmo continuar a ver Faustão todos os domingos, mas seria diferente porque, por mais que tenha sido um saco na época, os discursos do meu professor abriram meus olhos e isso foi suficiente.
Ontem meu avô fez aniversário e completou 69 anos. Naquelas conversas de aniversário meio melancólicas e meio nostálgicas que minha família adora, meu avô suspirou e disse que já viu um bocado de coisa do mundo, que presenciou um tanto bom de mudanças, e aí ele citou o exemplo do racismo. Ele disse que viu o racismo de perto, do pior jeito, ele, negro e pobre que chegou do Mato Grosso em Minas Gerais em meados dos anos 50, e eu não duvido. Mas aí quando ele disse que hoje era diferente e isso me desceu bem quadrado, quis levantar meu dedinho e dizer com licença Luciana, vamos com calma porque tudo bem que os negros não tem mais que dar lugar pros brancos no ônibus e esse tipo de atrocidade, mas falar que o racismo praticamente acabou ou que ele está longe da gente é um pouco demais. Mas fiquei quita no meu canto e não disse nada porque eu não queria ser chata.
É comum atualmente ouvir uma galera reclamar que hoje em dia tudo é racismo, tudo é machismo, tudo é homofobia, tudo é preconceito, e muita gente compra essa ideia. Que a gente exagera. Que estamos sendo chatos. Que estamos vendo pelo em cabeça de ovo e caçando encrenca, esse tipo de resposta amigável. Eu já disse isso diante de incontáveis falas e textos e sei que ainda vou dizer um bocado, mas hoje eu queria tirar meia hora do meu dia para reconhecer como todos esses chatos foram importantes pra mim.
Tem gente que diz que hoje tudo é racismo e a gente não pode mais dizer nada que está sendo preconceituoso, que aquela coisinha ali é normal, que esse povo que fala de representação tinha que arranjar um lote pra capinar ao invés de ficar procurando erro onde não tem, que que tem a ver não ter negro na novela, 2013 e povo falando de estereótipo, etc, etc, etc e tal. O problema, no entanto, é que tudo é normal demais até alguém apontar o dedo e ver um problema, até alguém colocar a boca no trombone e construir um debate, até alguém incomodar quem está sentado de boa e fazer essa pessoa colocar a mão na consciência e pensar: ok, é normal mesmo ou eu que me acostumei com o absurdo? E aí, aos poucos, a gente vai treinando nossa forma de ver o mundo, vai prestando mais atenção no significado das coisas, começa a se questionar e questionar os outros e quando isso acontece o normal já está a léguas de distância. Tudo isso começa com um chato, e que bom que eles existem.
Sabe, não sou a favor de um universo politicamente correto, acho uma sandice sem tamanho querer tirar os livros do Monteiro Lobato das escolas e essa ideia de mostrar um mundo asséptico onde todo mundo se ama. Sou contra querer colocar rédeas em humorista babaca porque acho que é melhor a gente ter direito de ser idiota do que ser obrigado a calar a boca, mas o mesmo direito que ele tem, o resto do mundo também tem, aliado a um dever quase cívico, de falar que ele está sendo um idiota total e completo. Apontar o dedo e ser chato chato chato chato até morrer, porque isso leva muitas pessoas a pensarem uma vez mais no assunto e ver se porque é humor é inofensivo, se porque é piada tudo bem atacar uma minoria que foi oprimida durante toda sua história.
Deixe que eles falem, mas vamos falar de volta.
E aí tem a questão do machismo, que eu acho perigosa por muitas vezes ser sutil demais. Lembro que na época da Geisy era normal falar que era exagero ela reclamar do tratamento que recebeu na faculdade tendo em vista que ela pediu pra ser tratada daquele jeito. Sei porque ouvi isso, e de pessoas muito próximas, gente estudada e vacinada repetindo essas besteiras. E hoje, sei não, por mais que o discurso de a culpa ser das mulheres ainda existir, a casa cai muito mais fácil pro lado de quem repete essas besteiras. Essa semana a Marie Claire soltou uma nota de esclarecimento em
uma matéria do site que mostrava o corpo perfeito (sic) de uma modelo. Qualquer um que olha a foto percebe que ela está perigosamente abaixo do peso e a caixa de comentários choveu de gente indignada, o que forçou a revista a tentar remendar a situação. Achei a nota péssima, mas foi um passo.
Há poucos meses atrás eu não tinha nem metade do senso crítico que tenho hoje e muita coisa teria passado batida por mim não fosse pelo exército de chatas dispostas a abrir nos olhos. Moça, esse texto é machista. Moça, abre seu olho que essa revista está te enganando. Mocinho da Capricho, vai comer feijão e parar de escrever besteira. Sigo e acompanho um punhado de mulheres desse meio, que não vou citar porque vocês sabem de quem estou falando, e várias vezes ao dia chego a encher o saco delas batendo na mesma tecla sempre, tantas vezes achei que certas pautas eram mesmo procurar pelo em cabeça de ovo, mas essas leituras e essas opiniões certamente abriram meus olhos e me ajudaram a ver que um punhado de coisas normais eram, na verdade, cheias de problemas, sendo que um dos maiores era justamente o fato de grande parte das pessoas não parar pra pensar um segundo que aquilo não é normal.
Há dois meses a TPM lançou uma edição com uma capa falsa cheia de manchetes absurdas (e verdadeiras) prometendo dietas milagrosas, truques para teste do sofá, etc, seguida de uma capa verdadeira criticando as mentiras que a imprensa feminina conta para as mulheres. No primeiro dia eu achei aquilo um máximo. No segundo, li um texto da Juliana Cunha chamando a ação de
feminismo de farmácia. Enquanto lia, pensava: mas gente, a revista faz uma ação tão bacana, por que a Juliana está sendo chata assim? E aí eu fui lembrando da revista, de algumas seções, daquelas casas de arquiteta e das 24 horas cheias de feiras alternativas e reuniões em restaurantes descolados, e minha ficha caiu. Por causa da chata da Juliana eu nunca mais olhei a TPM do mesmo jeito, e eu achava a revista a mais legal voltada pro público feminino no mercado nacional. Ainda é, mas me dê aí meio quilo de ressalva pra viagem, por favor.
A gente nunca questionou tanto padrões de beleza e de corpo, estamos falando como nunca sobre ser gorda, ser magra e o que isso tem a ver com ser você. A
Chega de Fiufiu fez muita gente enxergar que não é normal um cara passar de carro devagar perto de você e te chamar de gostosa, não é natural eu pensar na roupa que vou usar pra sair levando em consideração que vou andar três quarteirões sozinha de noite e um short ou vestido podem me fazer, na melhor das hipóteses, ouvir besteira dos caras sentados na calçada do bar perto da minha casa - e eu faço isso sempre que vou sair sozinha. E tem gente que acha que é normal, não sei nem se minha mãe, que me ensinou a apertar o passo e fazer cara de dragão sempre que alguém mexesse comigo na rua, parou pra pensar no absurdo que era ela me ensinar isso. Até uma pessoa com olho de vidro enxerga o abismo que separa o assédio nojento de um flerte maroto, flerte moleque. Se faz você pensar em estupro, não tem nada de normal.
E a gente é
chata por apontar apontar isso.
Resolvi escrever esse texto porque hoje uma guria postou um teste num grupo que eu participo do Facebook. Um teste besta desses que tem aos montes na internet, que no caso serviria para medir o grau de feminilidade ou masculinidade do seu cérebro. As perguntas tinham a ver com coisas do senso comum, como a forma de lidar com adversidades, de tratar os outros, etc, e no final eles te davam sua pontuação e uma escala. Acima de X seu cérebro é feminino e se você for homem você é gay. Abaixo de Y seu cérebro é masculino e se você for mulher você beija moças. Arrepiei de horror quando li essas coisas e já desconfiava do desastre do resultado quando li as alternativas. E me orgulhei de mim por causa disso, não porque eu ache que tenha um senso crítico invejável, mas porque talvez, há uns meses atrás, eu nem tivesse reparado nisso e poderia considerar o teste uma brincadeira besta e inocente.
Não era, e fiquei feliz também quando o pessoal no grupo questionou a mensagem por trás da brincadeira. E claro que uma pessoa estava super na defensiva, no fundo achando aquela galera um pé no saco, falando sobre padrões e normalidade, essas duas palavras tão traiçoeiras. A
Lu, com seu conhecimento de Psicologia, deu uns toques muito bacanas sobre questões de gênero do ponto de vista mais científico, porque insistem em falar que essas relativizações são coisas de gente de Humanas que não tem louça pra lavar.
E mesmo que o tom de muitas pessoas naquele tópico tenha sido o pior possível, que é chegar jogando pedra e acuando quem discordava por ignorância do assunto (!), o que eu acho péssimo, fiquei feliz de ver todas aquelas pessoas sendo tão chatas e fiquei agradecida pelos chatos que passaram na minha vida. Se não fosse por eles eu poderia estar lá achando um drama enorme a galera se doer por conta de um teste besta da internet. Mas nunca é só um teste, nunca é só um livro, nunca é só uma capa de revista, nunca é só um apelido e nunca é só um elogio banal.
Eu posso não ter concordado totalmente com os chatos da minha vida, posso ter discordado integralmente deles, mas eles contribuíram para que eu pensasse e me perguntasse sobre tudo ao meu redor. Desde o chato que há anos atrás escrevia uma coluna na Capricho e dizia que Jota Quest era a pior banda do mundo e eu não acreditava, até a chata que me fez ver que na TPM tem muito mais morde e assopra do que supunha a minha vã filosofia. Prefiro viver num mundo de chatos retumbantes que me dão a chance de escolher qual voz eu quero ouvir até achar a minha própria do que em um em que ninguém fala nada e eu tenho que sorrir e acenar porque a vida é assim.