terça-feira, 27 de maio de 2014

Aquele com as bicicletas

Ou: se não desse errado, não seria a gente

Algumas ideias nascem erradas, com a cara torta e verruga no nariz. Outras, mais astutas, se disfarçam muito bem de epifanias geniais e demoram um pouco mais para tirar as máscaras, tal qual Anjelica Houston em Convenção das Bruxas. As bicicletas que o Itaú instalou na orla das praias da zona sul carioca seguiram direitinho essa segunda cartilha, e se mostraram tão falhas como a ideia de ir de Copacabana até Ipanema pela ciclovia pareceu brilhante depois de um almoço em frente ao mar.


Antes, uma observação: cariocas são bonitos, bacanas e dourados, igualzinho a Adriana Calcanhoto nos ensinou. Há exceções, não duvido, mas é difícil não ficar com essa ideia entronizada depois de ver um número assustador de pessoas caminhando, correndo e sendo saudáveis na rua, às seis e meia da manhã de um feriado. 

Então, depois de passar três dias vendo aquela gente bronzeada mostrando seu valor mexendo o esqueleto sempre que parecia apropriado, achei absolutamente natural quando uma das meninas sugeriu que ao invés de ônibus, usássemos as bicicletas para chegar na praia de Ipanema. Era uma etapa óbvia no processo de carioquização express, mais significativa até que todas aquelas (muitas) vezes que eu forcei a barra com meu sotaque forçado. Sdds frexicão.  

No entanto, as bruxas começaram a revelar suas verdadeiras faces quando ficou sabido que algumas mafiosas não andavam de bicicleta. Porque a gente é bicha movida pela filosofia de que ou vamos todas ou ninguém vai, e foi esse pequeno obstáculo que me mostrou que aquilo ali não estava certo. Fomos checar o que era necessário para alugar uma bicicleta e só tivemos mais problemas. 

Teste básico: se o cerumano responsável por bolar um sistema para o empréstimo de bicicletas numa cidade que recebe turistas o ano inteiro (e que vai sediar uma Copa & uma Olimpíada) você fosse, que tipo de esquema você proporia?

a) (  ) Dá um sorrisão e tá tudo beleza;
b) (  ) Coloca um tio pra cobrar dois reais a hora e fechou balada;
c) (  ) Terminalzinho bacana e funcional onde as pessoas se cadastram e conseguem liberar a bike pra andar numa boa até o próximo ponto e demorô é noix;
d) (  ) Exija um cadastro prévio ou obrigue o colega a ter um smartphone pra baixar um aplicativo, numa zona sem wi-fi, que vai liberar a bicicleta. Pra manter as aparências, pague um funcionário pra ajudar, mas garanta que ele só vai mandar todo mundo resolver qualquer coisa pelo telefone, inclusive se o seu problema for regular a altura do banco.   

Foi numa esperteza ímpar que a galera do Itaú deu um sorrisão e escolheu a alternativa D, coisa que me deixou tão nervosa que a vontade de andar de bicicleta na praia sumiu em dois tempos. Não prestei muita atenção no mal estar que estava rolando devido ao fato de nem todo mundo saber andar de bike porque eu jurava que não sairíamos dali sob duas rodas de jeito maneira. Quando eu lembrava da Clara, da novela, felizona andando com a tal laranjinha (vocês me respeitem) pela cidade, ficava mais nervosa ainda. O negócio é que enquanto eu amaldiçoava o responsável por aquilo mentalmente, nosso grupo se dividiu e eu perdi a chance de evitar a fadiga com aquelas bicicletas.

Depois de uns 40 minutos entre aplicativos que não carregavam, zonas que se recusavam a aparecer e bicicletas que não constavam no sistema, liberamos nossas magrelas. Talvez seja a hora de confessar que meu desconforto com aquela situação tinha uma raiz mais profunda, que não era o sistema imbecil e nem o fato de algumas amigas terem ido chateadas no ônibus, mas sim um receio que eu tinha de não saber mais como andar de bicicleta. Eu sei daquela máxima que todo mundo repete, que esse é o tipo de coisa que a gente aprende uma vez e nunca esquece, mas meu histórico de azar e absurdos é tão extenso que pra eu tombar pro lado na primeira pedalada não custava nada.


E lá fomos nós, eu, a última da fila, vendo minhas amigas com uma enorme desenvoltura atravessarem a rua montadas nas bicicletas, eu, ali sentindo os olhos do Rio de Janeiro com seus cariocas bronzeados e bacanas sobre mim, eu, já com uma vergonha antecipada de um mico que parecia inevitável, pedalei. Pedalei para provar que os deuses, nossas avós e os tios do churrasco nunca estiveram tão certos: a gente não desaprende a andar de bicicleta.

Isso, no entanto, não significa que foi tudo muito fácil. Eu nunca tinha andando numa bicicleta com marchas na vida e demorei até entender como aquilo funcionava. Aliás, mais complicado mesmo foi sentir segurança para fazer qualquer coisa que não pedalar, eu ali muito concentrada em não atropelar ninguém ou me esborrachar no calçadão, enquanto minhas belas amigas brincavam com a campainha, conversavam, tiravam fotos e se sentiam infinitas. Me senti a pessoa mais inepta do mundo ao ver Giuliana Rebeca de braços abertos para o Crixto Redentor ao pedalar, enquanto eu andei por quase 10 minutos com o óculos de sol no meio da testa, feito uma idiota, porque não conseguia tirar uma mão do guidão para dar uma mãozinha pra minha dignidade, tão necessária no ambiente com a maior densidade demográfica de caras bonitos e atléticos que eu estive em muito tempo. 

Preciso ser justa e dizer que nem tudo foram espinhos: ali no meio do caminho eu já estava mais relaxada e consegui curtir a aventura e o ambiente. Afinal, depois de tanto estresse, pra algum propósito aquilo tinha que servir. Serviu pra eu morrer de inveja dos cariocas que tem aquilo todo dia, serviu pra eu relembrar a sensação maravilhosa que é andar de bicicleta, serviu pra eu odiar um pouquinho a minha cidade que não é nada acessível pra esse meio de transporte, e serviu, no fim das contas, para termos essa história pra contar. Porque a gente se mete em roubadas pensando que aquilo no fim vira um texto.

Mas o mais importante mesmo foi chegar ao final da jornada e ter a gente.


sexta-feira, 16 de maio de 2014

Apenas mais um sobre livros

Não me animei muito com os temas de blogagem coletiva para esse mês no Rotaroots, por isso fiquei com muita vontade de fazer esse meme literário que eu vi no blog da Del, e que a senhora Analu correu na minha frente, postou e já me indicou. As perguntas foram propostas em uma TAG chamada Palavras Cruzadas, que foi criada pela Inês do InesBooks lá no Youtube. São 15 perguntas bem divertidas a respeito de livros que já lemos (ou evitamos ler) que eu gostei muito de responder, embora tenha quebrado minha cabeça desmemoria com algumas. 

1) Vox Populi (um livro para recomendar a toda gente)

Eu tenho reflexo de recomendar para os outros o último livro que li e me apaixonei o suficiente para ter vontade de passar aquilo adiante, mas sei que isso não é inteligente. Existem pessoas e pessoas, e aquela leitura que para mim foi sensacional pode acabar sendo insossa para a amiga mais próxima. Antonio Prata é uma das raras exceções: recomendo a leitura de suas crônicas a torto e a direito com a segurança de que o aproveitamento será positivo, pois acredito que sua prosa e seu humor são praticamente universais e servem bem até a quem não é um leitor costumaz (sempre quis usar essa palavra). Minha avó, por exemplo, que não costuma ler literatura, já passou uma agradável tarde na companhia dos Pratinhas da minha coleção. Em se tratando dela, acho que o Meio Intelectual, Meio de Esquerda tem o melhor apanhado de crônicas do moço já lançado.

2) Maldito plágio (o livro que gostaríamos de ter escrito)


Na hora de sonhar o céu é o limite, e não me avisaram que esse meme tinha algum compromisso com a realidade concreta. No entanto, gostei da forma como a Analu enxergou esse tópico: ao invés de mirar na lua, minha querida amiga Banana foi humilde e mirou numa estrela possível. Minha lua, no caso, seria alguma pérola machadiana como Dom Casmurro ou Memórias Póstumas de Brás Cubas. No entanto, se algum dia eu fosse efetivamente escrever um livro, eu gostaria de um feito parecido com o da Vanessa Barbara em O Livro Amarelo do Terminal (fiz vídeo sobre ele): uma reportagem em profundidade sobre Terminal do Tietê em São Paulo que contém tudo que mais amo no jornalismo e na antropologia: personagens invisíveis, etnografia, reflexão sobre não-lugares, etc, tudo com bom humor.

3) Não vale a pena abater árvores por causa disso 


Acho especialmente difícil falar sobre livros ruins ou que eu tenha odiado porque acredito que escolha muito bem o que eu leio - não que eu só leia coisa boa, mas acho que faço apostas certas de acordo com aquilo que gosto e espero de um livro. Por isso, mesmo que eu não goste da história ou dos personagens, existe algo ali que me interessou a princípio e que eu levaria em consideração antes de dizer que aquilo não deveria existir. Mas Por Isso A Gente Acabou (vídeo), do Daniel Handler, foi além do simples ato de não gostar, porque esse livro me irritou. Muita gente que não gostou disse que ele vale pelas ilustrações, mas uma arte tão bonita pra uma história tão besta com personagens detestáveis assim não seria também um desperdício de papel bom e talento? Eu acho.

4) Não és tu, sou eu (um livro bom, lido na altura errada)


Diferente de muita gente por aí, sempre que começo um livro, eu espero gostar dele. No caso de O Sol É Para Todos, da Harper Lee, eu não apenas queria gostar, eu queria amar e tatuar na alma, porque passei anos ouvindo apenas louvores apaixonados a ele por parte da minha amiga Taryne, cujo gosto eu me identifico e respeito pra caramba. Surpresa triste foi começar e terminar a leitura sem ter conseguido me conectar à trama, tampouco aos personagens. Foi especialmente difícil chegar na retrospectiva do final do ano e classificá-lo como a leitura irrelevante de 2013, mas eu precisava ser sincera: alguns meses depois, nem do plot eu lembrava mais. Mas eu sei que ele é bom. Sei que é apaixonante e sei que ainda irei tatuá-lo na alma, basta que a gente se reencontre na hora certa.

5) Eu tentei... (um livro que tentamos ler, mas não conseguimos)


Acho que O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, é o livro da minha estante que mais acumulou tentativas fracassadas de leitura. Pelo que me lembro foram quatro - and counting, porque eu ainda não desisti. É um livro fino mesmo na edição de bolso, e muita gente o descreve como um relato de aventura desses impossíveis de se desgrudar, enquanto eu, aqui na minha insignificância, o defino como um relato impossível de se ler sem dormir. Acho que é pessoal, pois sua adaptação para o cinema, Apocalypse Now, é um filme que eu nunca consegui ver sem dormir, tanto que só vi inteiro quando dormi no começo e acordei pro fim. O problema é que, apesar dos cochilos, eu acho o filme bom demais e ainda acredito que quando eu chegar no fim desse livro, verei que todo o esforço e todos os anos terão valido.

6) Hã? (um livro que lemos e não percebemos nada OU um livro com final surpreendente)


Acho que sou meio idiota, porque sempre me surpreendo com o final dos livros que tem algo no final que surpreenda minimamente os leitores. Mesmo aquelas viradas de roteiro que tooodo mundo viu que aconteceria, eu confesso que só vejo depois que alguém abre meus olhos. Aí eu fico toda nooooossa, é verdade. Mas se deixar por minha conta, sempre vou levar um pequeno susto. No caso de A Esperança, parte final da trilogia Jogos Vorazes, da Suzanne Collins (um dos finais mais controversos das franquias famosas), o fim realmente me surpreendeu. Definitivamente didn't see that coming e ouso dizer que gostei. Não consigo sustentar meu argumento muito além disso porque a memória me falha e também não quero dar spoilers, então apenas digo que acho finais agridoces muito bem-vindos.

7) Foi tão bom, não foi? (um livro que devoramos)


Acho Serena um exemplo emblemático quando o assunto é devorar livros porque ainda que ele não tenha ido embora em uma sentada (não tenho esse costume), foi um livro que li nuns três dias em plena viagem de férias para Fortaleza. Ou seja, eu tinha uma praia e um parque aquático à minha disposição, mas o livro me envolveu de tal forma que eu preferi ficar quietinha lendo. E eu sou uma pessoa que gosta de praia e parque aquático. Tinha medo de ler qualquer coisa outra coisa do Ian McEwan, porque Reparação é um dos meus livros mais favoritos da vida e eu o respeito por demais para deixar que seu autor se tornasse uma one hit wonder no meu coração. Mas o velho matou a cobra e mostrou o pau com Serena, que também poderia entrar na categoria de finais de cair o queixo.

8) Entre livros e tachos (uma personagem que gostaríamos que cozinhasse para nós)


Tá, quem cozinhou e me deixou com fome nesse livro não foi um personagem, mas eu preciso comentar o óbvio: a passagem de Liz Gilbert pela Itália, país que corresponde ao primeiro verbo do título de Comer, Rezar, Amar (um livro excelente que não tem nada a ver com auto-ajuda, parem de preconceito) me fez salivar nas páginas. Essa mulher passou uns bons meses vivendo de pizza, macarronada, gelatto, vinho e italianos gatos e certamente tirou um prazer sádico em descrever minuciosamente todas as delícias que experimentou por lá. Pizza é meu prato favorito, seguido muito de perto por lasanha e macarronada. Sorvete e vinho sempre vão bem, de modo que saindo da Itália Liz foi para sua jornada espiritual na Índia, e eu fui pra cozinha tentar dar cabo na larica.

9) Fast forward (um livro que poderia ter menos páginas que não se perdia nada)


Estou me aventurando no primeiro volume de Guerra dos Tronos há mais ou menos umas três eras geológicas, e às vezes tenho vontade de mandar uma carta pro George R. R. Martin lhe contando que ninguém precisa de tantas descrições de florestas. Mas não quero polemizar, até porque sei que não vi nada (imagina no terceiro volume!) por isso digo, dessa vez sem medo de errar, que Bling Ring, da Nancy Jo Sales, que nasceu como uma grande reportagem na Vanity Fair para depois virar livro, poderia muito bem ter continuado nas páginas da revista - que não foram poucas. Li ambos e acho que o livro só serviu para a história ficar prolixa e para que a autora enchesse suas análises de comentários bestas e julgamentos desnecessários sobre os personagens.

10) Às cegas (um livro que escolheríamos só por causa do título)


Eu não devia ter nem dez anos quando quis ler Lolita pela primeira vez. Não sabia nada sobre ele, mas esse título me atraiu logo na primeira vez que o li por aí. Gosto muito quando nomes viram títulos, seja de livros ou de músicas, e Lolita ainda intriga por ser um nome, ou apelido, pouco comum. Surpresa foi descobrir anos depois que logo na primeira página o autor fazia uma referência importante (e genial e inesquecível) a esse nome: Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta. E se for pra citar alguma coisa que eu não li, mas que está na minha lista de leituras futuras unicamente por causa do título, posso citar Casei Com um Comunista, do Phillip Roth. Nem sei do que se trata, mas pelo título deve ser ótimo!

11) O que vale é o interior (um livro bom com a capa feia)

Vale um livro que eu ainda não li? Tem que valer, porque a capa de Lola e o Garoto da Casa ao Lado é horrorosa o suficiente pra ser um dos motivos pelos quais eu ainda não li o livro. Nunca ouvi ninguém falando mal dele e absolutamente amei o outro título da Stephanie Perkins, Anna e o Beijo Francês (outro com a capa feia, porém com limites), mas não tenho coragem de pagar por um livro tão feio e ainda não achei boa alma que me emprestasse. Sei que é besteira, mas sempre sinto que estou jogando dinheiro fora quando penso em comprar uma coisa tão horrorosa. Agora que tenho um Kindle não tenho mais desculpas e devo lê-lo em breve - até porque o terceiro livro dessa "trilogia" sai esse ano. Querida editora Novo Conceito, a menina Perkins merece mais cuidado!

12) Rir é o melhor remédio (um livro que nos tenha feito rir)

Falar que os livros da Sophie Kinsella são engraçados é chover no molhado, mas num tópico desses só consigo pensar em Fiquei Com Seu Número. Eu gargalhei várias vezes durante a leitura, inclusive dentro da sala de aula, e costumo ser bem chatinha com humor. O legal desse livro é que ele nos faz rir naquele sentido puro de achar uma graça absurda em todas as situações, quando o humor não se concentra apenas no texto ou então em algum personagem que existe para disparar tiradas espirituosas.

13) Tragam-me os Kleenex, faz favor (um livro que nos tenha feito chorar)

Acho complicado falar sobre isso, porque ao mesmo tempo que é muito difícil me fazer rir durante uma leitura, me fazer chorar é a coisa mais fácil do mundo. Eu choro com absolutamente tudo. Mas já que preciso citar algum, fico com o que acredito que tenha sido meu choro mais marcante: Para Francisco, da Cristiana Guerra. Foi marcante porque eu estava marotamente dando uma folheada ainda na livraria e quando vi eu estava chorando. Não com os olhos cheios d'água, mas chorando, precisando de um lenço pra assoar o nariz, e sentindo uma dor muito sincera e genuína. Já faz muito tempo, mas esse livro ainda é um dos mais tristes e bonitos que li.

14) Esse livro tem um V de volta (um livro que não emprestaríamos a ninguém)


Não tenho muita questão com emprestar meus livros, até porque pentelho tanto as pessoas para ler as coisas que eu andei lendo e gostando que seria meio estranho recomendar e depois recusar o livro. Não gosto muito de ceder meus paperbacks, porque eles já são frágeis e até o manuseio mais cuidadoso detona os bichinhos. Mesmo assim, se pedir com jeitinho eu libero. No entanto, minha edição importada, em capa dura e autografada (!) de The Fault In Our Stars é um objeto de excessiva estima e ciúmes. Já emprestei uma vez,  e confesso que cheguei a recomendar ao meu amigo que não o cheirasse demais, porque até o cheiro dele é diferente dos outros (sim). Esse amigo cuidou muito bem dele, mas preciso dizer que fiquei muito feliz e aliviada quando guardei ele de volta na estante.

15) Espera aí que eu já te atendo (um livro ou autor que estamos constantemente a adiar)


Fiquei muito feliz quando ganhei esse livro de presente da Milena, no primeiro amigo secreto da história da Máfia, mas a felicidade veio acompanhada de uma certa apreensão. Como bem definiu a Tary, se está na estante é uma promessa, o que significa que um dos trabalhos mais emblemáticos da Virginia Woolf me aguarda em algum ponto do futuro. Tenho muita curiosidade com o trabalho da autora e tenho aqui um livrinho de artigos dela que vivo lendo, mas seus romances ainda me assustam. É bem provável que eu comece com algo mais tranquilo, como Mrs. Dalloway, mas é fato que um dia lerei As Ondas. Entra ano, sai ano e eu digo que aquele será o ano da Virginia Woolf na minha vida, mas os meses passam e suas ondas ficam ali me observando ressabiadas da estante.

Indico o meme para quem quiser responder (me avisa pra eu ver!), mas especialmente para Flá, Kamilla, Amandoca, Fernanda, Ana e Tadsh! Espero que gostem =)

terça-feira, 13 de maio de 2014

Cidades maravilhosas

Eu aprendi a gostar de Uberlândia quando comecei a andar em Uberlândia. Filha única, cria de apartamento com todas as credenciais de ex-criança boba e esquisita que meus pais puderam me dar, passei a ganhar a cidade com minhas próprias pernas e sem supervisão depois dos 15. Uma coisa é andar na rua com alguém segurando sua mão e te dizendo pra onde ir, outra bem diferente - principalmente para pessoas distraídas e perdidas como eu - é fazer isso por sua conta. E foi só assim que eu conheci a cidade onde eu nasci e morei a vida inteira, e foi dessa forma que comecei a gostar dela.

Era como se passar periodicamente por aquelas praças, conhecer os seus contornos e hábitos - aqueles cinco minutos de diferença entre ter que esperar uns três turnos do semáforo pra conseguir atravessar a rua ou passar direto - as falhas no calçamento, as placas, as pessoas, a forma como o sol bate em determinados prédios depois das cinco; tudo isso fez com que eu lenta e gradativamente amasse a minha cidade natal. Passei mais de quinze anos alheia a tudo isso, me restringindo a, mecanicamente, entrar e sair de um carro, ou então a ser conduzida por aí pelas mãos de alguém meio apressado. Sozinha, mesmo que com hora pra chegar nos lugares, o tempo é meu e o espaço também, para que eu o explore como bem entenda, um dia entrando numa rua, e no seguinte vendo onde aquela outra iria dar. 

Ai de mim que, ainda por cima, sou romântica e adoro me sentir flâneur, porque isso faz com que eu decore as casas bonitas pra observar pela janela do ônibus, atravesse as praças pelo meio (e tem uma com um busto gigante do Juscelino Kubitschek que eu sempre paro pra ver, nem que seja por um minutinho, porque quando eu era pequena minha avó me levava para dar oi pro Juscelino e eu achava isso o máximo), dê trela pra todo cachorro que cruza o meu caminho e seja colega dos donos de banca de revista que eu visito pelo menos uma vez por mês. Estou sempre atrasada, quase sou atropelada ao menos uma vez na semana, sou aquela pessoa insuportável que às vezes atrapalha o fluxo da calçada, mas amo minha cidade à moda de Chico Buarque: amo tanto e de tanto amar, acho que ela é bonita. 

Já São Paulo eu conheci desde bem nova gastando com força a sola do sapato. Acho que ainda sei andar melhor em São Paulo do que na minha própria terra. Tenho família por lá e me candidatava para acompanhar quem quer que fosse em todas as visitas, além das férias obrigatórias em janeiro. É quando boa parte dos paulistas foge da cidade cinza e cheia de pedras que eu encontrava o momento perfeito para me jogar nela de cabeça.  Meu primo e fiel escudeiro é quem sempre me levou pra lá e pra cá, e ele nunca teve muitos pudores com caminhadas em longa distância. Sempre desconfio quando ele diz que é perto, dá pra ir andando. Eu sei que não é, pra quem vem de uma cidade com menos de um milhão de habitantes o perto paulista nunca vai ser o nosso perto, que significa ali na esquina. Mas mesmo sendo tudo tão longe, tudo tão enorme e assustadoramente longe ao ponto de eu querer subir de quatro aquela ladeira e já ter esfolado um sapato novo de tanto andar, valia o esforço. 

São Paulo é horrível e incrível ao mesmo tempo, é uma cidade que te assusta e te acolhe, te abraça com força e te espanta com crueldade. As pessoas sempre louvam São Paulo como uma cidade que não é pra principiantes, e sim para sobreviventes, mas pra mim sempre foi muito fácil gostar de lá. Existe algo na sua postura difícil que sempre me atraiu, porque eu nasci escolhendo as coisas mais difíceis pela graça do difícil, mesmo que seja complicado demais pro meu próprio bem. Porque mesmo com o metrô lotado, meu coração sempre acelera quando subo a escada rolante e me vejo no meio da Paulista. Mesmo tendo que segurar a bolsa mais firme junto ao meu corpo, eu amo todas as pessoas diferentes que existem ali. 

Ninguém precisou me ensinar o modus operandi do tough love de São Paulo, porque desde sempre nós falamos a mesma língua. São Paulo é como amar uma pessoa difícil que te implora todo dia pra ir embora, é como todo boy lixo que tem lá seu charme, é como uma cena clichê de filme em que uma pessoa ataca a outra, que a segura firme até que os socos se transformem em abraço e a raiva vire choro redentor. É como a tatuagem cantada por Chico: pesa feito cruz nas nossas costas, nos retalha em postas, mas no fundo a gente gosta e nem é só quando a noite vem. 

Então eu conheci o Rio de Janeiro, e vocês já devem ter ouvido por aí que ele é lindo. Passei anos esnobando a cidade, achando que meu coração gelado e cinza de quem adotou São Paulo mesmo nunca tendo morado lá me faria imune a todos os encantos que ela guardava. O sol carioca demorou 18 anos para me derreter, e de cenário inofensivo das novelas, o Rio se tornou uma obsessão pessoal. Eu precisava colocar meus pés naquela cidade. Não precisei nem efetivamente pisar no Rio para estar apaixonada: bastou um pouso no Santos Dummont pela Baía de Guanabara na hora do por do sol pra eu pensar seriamente que se eu morresse, minhas cinzas deveriam ficar ali. 

Na manhã seguinte peguei um freixcão que atravessou toda a zona sul e o centro, e fiquei como criança vidrada na janela, amando tanto e achando tudo tão bonito que chegava a doer. Brinquei com as minhas amigas que me sentia na Disney na Globo, porque estava andando nos cenários que por vinte anos só existiam na tela da televisão, e me parecia surreal que tudo aquilo existisse mesmo e fosse ainda mais bonito do que tudo que o Maneco já mostrou. Eu só pensava que jamais seria capaz de ser feliz em qualquer outro lugar. São Paulo parecia Cubatão, e Uberlândia uma Cumari piorada. Deixei um pedaço de mim em cada uma das janelas antigas dos prédios velhos de Copacabana, com seus velhinhos nas calçadas e as padarias pitorescas. Ainda é possível encontrar lascas de Anna Vitória na orla das praias e na pedra do Arpoador. 

Eu já sabia que amaria o Rio, mas não pensei que fosse tanto, nem tão fácil. Quem cresce entre Uberlândia e São Paulo passa a acreditar que é regra essa maluquice que o amor vem associado às pauladas, mas existe o Rio de Janeiro pra mostrar que pra ser charmoso não precisa ser caolho e que pra ser interessante não precisa pedir pelo amor de Deus pra gente ir embora. O amor pode ser fácil e simples, como um menino de sorriso bonito. 

Uma amiga uberlandense refugiada no Rio me escreveu que lá é o único lugar onde é possível lavar e deixar a alma ao mesmo tempo, e foi isso que ele fez comigo. Em Futuros Amantes, Chico canta a história de um amor que de tão enorme ficou guardado para ser amado num futuro distante, que transformaria o Rio numa cidade submersa a ser explorada por escafandristas. Sempre entendi que a letra falava de um amor romântico, e na verdade é isso mesmo, mas é impossível pisar no Rio de Janeiro, e depois deixá-lo, sem ficar com uma sensação de que um pouco de si ficou por ali também. 

Talvez seja esse o segredo da cidade: ela é tão linda que todo mundo que sai deixa um pouco de amor no fundo de uma gaveta, atrás de uma pedra, flutuando por milênios no ar a fim de ser amado de novo e de novo por todo e qualquer visitante, uma espécie de futuro amante. Afinal, amores serão sempre amáveis e é isso que me consola: saber que um dia irei voltar e ele vai me esperar inteiro - e lindo. 

Uberlândia sempre vai ser minha casa e é tipo amor de mãe, São Paulo sempre vai acelerar meu coração como uma paixão proibida, mas desconfio seriamente que o Rio seja o novo amor da minha vida.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Anywhere but here

(2012, 2013)

Uma das críticas negativas que mais li a respeito de Um Dia, um livro que gosto muito, é a de que a execução da proposta é inverossímil e até um pouco mal feita. Isso porque o livro se propõe a acompanhar os personagens por vinte anos, sempre no mesmo dia. Cada capítulo do livro fala do mesmo dia 15 de julho, ano após ano, e ok, é verdade que sempre nesse mesmo dia acontece algo significativo que faz a Emma pensar no Dexter ou vice-versa (que saudades desse livro), mas não foi pra discutir isso que vim aqui hoje. 

O negócio é que desde que me apaixonei por Um Dia, resolvi começar a registrar, ano após ano, um dia da minha vida, para ver qual é. O engraçado é que comecei há dois anos, e esses dois dias não foram dias como outro qualquer. Para o terceiro ano eu não sabia o que esperar da brincadeira, e se à meia-noite do dia 3 de maio me perguntassem onde eu estaria dali 24 horas, eu jamais imaginaria o que seria de mim naquelas próximas horas. 

Era uma vez eu, à meia-noite do dia 4 de maio de 2014, sentada no tapete do quarto de Paloma, junto com ela, a Analu, a Giu e o Marcelinho, irmão da Pa. Nós cinco em volta de uma garrafa de vodka, um balde de gelo, e papéis grudados na testa. Fico imaginando se alguém que pegasse a cena fora de contexto seria capaz de inferir que estávamos apenas brincando de Bastardos Inglórios e que tinha mais risada, gelo e gente se engasgando ali do que empenho para esvaziar a garrafa. Mais tarde transferimos a brincadeira para o tapete da sala de TV, onde brincamos de todos esses jogos de roda, juventude e viagens que éramos capazes de lembrar, terminando com o bom e velho stop, seguido da pizza que havia sobrado do dia anterior.


Há 24 horas, aquela sala abrigava um Encontrão Mafioso com pizza, pijamas, gargalhadas e troca de figurinhas, e por mais que estivéssemos rindo, por mais que estivesse tudo muito bom, não podíamos deixar de sentir o peso da falta da nossa folia que havia tomado praticamente de assalto a casa da família Engelke  Muniz nos últimos três dias. 

Não sei bem quando fomos finalmente dormir, mas foi estranho estarmos em número reduzido o suficiente para cabermos todas no quarto da Paloma. Aquela casa estava vazia demais, calada demais e existia espaço demais para quem até ontem estava dormindo em camadas e muito feliz por isso. Apagamos sem conversar muito para acordar novamente às 9h40 da manhã. "Giu, não era pra gente já estar na praia?", perguntei. "Era", a Giu respondeu, porque o plano era esse mesmo. Acordar às 8h para pegar praia logo cedo e aproveitar ao máximo antes de levar a Analu para o aeroporto, mas no quarto Encontrão a gente já deveria saber que cumprir planos à risca jamais foi o nosso forte.

Aliás, se os planos fossem seguidos, nem no Rio de Janeiro eu estaria. Perdi meu voo de volta pra casa no dia 03, de um jeito tão besta e absurdo que só consigo creditar ao destino ou a Deus, que cansou de me ouvir buzinar no ouvido Dele que eu não queria ir embora. Agora toma, fia. Ou então foi só incompetência da Gol mesmo, mas essa história eu conto depois. O importante é que eu perdi meu voo e ganhei mais um dia inteiro no Rio, cidade que roubou meu coração da tal forma que depois de uma injúria dessas, ao invés de chorar no cantinho, eu fiz o que todo bom carioca faria: fui pra praia.


Eis que estávamos na praia da Barra (insira sua referência funkeira de preferência aqui) prontas para entrar no mar gelado, criando coragem para ir além dos tornozelos. Nos demos as mãos, eu, Paloma, Giu e Analu, e resolvemos pular ondas. Não sei se foram sete ou se perdemos as contas e acabamos pulando mais do que deveríamos, mas aquela água gelada, aquelas ondas e até o caixote que eu tomei tinham gosto de recomeço. Eu estava com a garganta doendo e com o corpo todo querendo ficar gripado, mas nada que uma onda forte seguida de uns goles de água salgada e outros litros que entram pelo nariz e salinizam a alma não resolvam. Eu juro pra vocês que minha dor de garganta sarou ali. 

Foi depois desse banho de mar gelado e redentor que resolvemos reiniciar o ano ali mesmo. Se judeus e chineses tem direito a um ano novo próprio, por que não nós, as mafiosas, também? 2014 chegou chegando com seu janeirinho da zica que veio se desdobrando até abril, mas o Rio de Janeiro, maio e aqueles dias lindos coincidindo com o nosso meme cabalístico nos trariam a glória. Ou pelo menos um espírito aberto e cheio de gratidão para recebê-la.


Na volta da praia meu celular caiu no chão e rachou a tela, mas vamos considerar isso como um arroto revoltado da zica e seguir em frente.

Na dúvida entre devorar logo a lasanha que a tia Lara tinha nos deixado ou tomar banho para tirar aquela crosta de praia, acabamos no chuveirão gelado da área externa mesmo, lavando os cabelos com o shampoo de macho gentilmente cedido pelo Marcelinho. E não é que o shampoo da Xuxinha funcionou num cabelo ruivo de farmácia pós sol & sal? Fica a dica para as bloguetes.

Mais tarde foi hora de conversas preguiçosas e cochilos para espantar a melancolia que começava a se instaurar com a proximidade de mais uma despedida. Tentávamos rir enquanto ajudávamos a Analu a colocar as últimas coisas dentro da mala e dar aquela conferida final se nada tinha ficado pra trás, tentando não pensar que faltava pouco tempo para irmos para o aeroporto. Abraços, lágrimas, Clarice Falcão e uma conversa sobre quadrinhos. Galeão, o inevitável tchau, um abraço em grupo, depois outro, e mais outro, choro de Passarinha e Analu me pergunta se eu perderia aquele voo de novo se pudesse voltar no tempo. Na condição de quem ainda não tinha levado a bronca que inevitavelmente me aguardava em casa, disse que ela não devia me fazer perguntas difíceis.


E algum tempo depois, eu de volta à sala de de TV de Palo, alternando cochilos com A Nova Cinderela e brigadeiro de colher, pensava na viagem do dia seguinte, no certeiro sermão que me aguardava em casa, e em tudo de incrível e lindo e maluco que vivi naquele feriado perfeito, e em como a vida é absolutamente imprevisível. Alguns meses antes eu tinha pensando sobre esse meme e em onde eu estaria, e nem passava pela minha cabeça que aquela viagem aconteceria, assim como há pouco menos de 24 horas eu poderia jurar que o dia 04 de maio seria passado com muita preguiça e saudade em casa, numa ressaca densa que só vem depois de coisas muito boas. E ali estava eu, repetindo as falas junto ao filme da Hilary Duff, observando em voz alta como o Chad Michael Murray já foi lindo e desejável, cantando a trilha sonora junto com Giuliana e Paloma, as três soldadas restantes de corpo presente, mas sentindo todas ali o tempo inteiro. Porque estar perto não é físico, principalmente em se tratando da gente. Não era pra eu estar ali, e mesmo assim não tinha outro lugar no mundo em que eu deveria estar.

E foi assim que mais um dia 04 de maio passou por mim. Feliz ano novo pra vocês também.

And I'll always remember it

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Ode a Meninas Malvadas

Texto escrito originalmente para a Revista 21

O mundo das garotas é uma selva.

Hoje faz dez anos que Meninas Malvadas estreou nos cinemas, e nesse meio tempo o filme foi de comédia adolescente de muito sucesso a objeto de culto, popular o bastante para já ser considerado um clássico contemporâneo. Eu não vivi a Beatlemania e os filmes do John Hughes jamais serão um retrato da minha experiência concreta de juventude, mas fico muito feliz em saber que cresci com Harry Potter e que Meninas Malvadas faz parte do consciente coletivo da minha época.


Embora seja um dos filmes mais queridos pelas pessoas e que seja raro encontrar quem nunca o tenha assistido ao menos uma vez, tem muita gente que acredita que as pessoas idolatram o filme ironicamente ou sentem vergonha em admitir que gostam dele de verdade, por mais bobinho que ele seja.

Pra começo de conversa, esse papo de gostar ironicamente é uma das coisas mais bestas que eu já ouvi, e que culpa a gente deve ter por achar que, em pleno 2014, precisa se desculpar ou se justificar por gostar do que gosta. Dito isso, nesse dia tão significativo para a cultura pop, queria defender a ideia de que não, Meninas Malvadas não é esse filme bobinho que alguns pensam que ele é, só porque é engraçado, só porque é sobre adolescentes, só porque é (olha só que coisa) sobre garotas.

Espero que vocês estejam de rosa, afinal, hoje é quarta-feira.

Como eu ia dizendo lá no começo, o mundo das garotas é uma selva. Essa ideia nos é vendida o tempo inteiro e não é de hoje: pense em quantos filmes você já assistiu que tinham no centro uma disputa entre meninas; quantas pessoas já te falaram que não se pode confiar em mulher; quantas meninas já te disseram que acham muito mais legal ter amigos homens, já que entre as garotas sempre rola inveja e competição;  quantos filmes já mostraram uma mulher tentando sabotar a amiga bem sucedida ou querendo acabar com a vida da namorada atual do ex. Meninas Malvadas é sobre isso também, mas de um jeito diferente.

Cady Heron (Lindsay Lohan) usa esse paralelo da selvageria duas vezes ao longo do filme: na primeira delas, a garota recém-chegada da África pensa consigo mesma que aquelas tensões ocultas que ela sentia entre as garotas do seu colégio – uma hostilidade constante e densa que pairando no ar, que todas fingiam não ver sorrindo falsamente umas para as outras – seriam facilmente resolvidas no mundo animal, onde ela poderia avançar livremente na direção dos cabelos de Regina George (Rachel McAdams) e lidar com as diferenças entre elas usando a força bruta. Depois, mais para o final do filme, quando o Livro do Arraso vem à tona, a cena é que vemos é de garotas grudando nos cabelos umas das outras, finalmente sucumbindo àquela tensão velada e descarregando fisicamente todas as frustrações, inseguranças, hostilidade e decepções que sentiam consigo mesmas e com as outras.

Muita gente não sabe, mas o filme foi baseado num livro que é uma espécie de manual para ajudar os pais de garotas adolescentes a ajudar suas filhas a sobreviver no microcosmo escolar, um ambiente que parece afetar as meninas de um jeito diferente. Isso porque a gente vive numa sociedade que não é apenas machista, mas que odeia as mulheres. Não é de hoje, não é da época das nossas avós; é uma construção social talvez tão velha quanto a roda essa ideia de que o feminino precisa estar sobre constante suspeição, como se por trás de toda essa delicadeza que a publicidade adora louvar existisse um fruto podre escondido. E como toda boa construção, essa ideia está de tal forma cimentada nos nossos inconscientes que a gente a confunde com a realidade, e é assim que a gente acredita mesmo que as mulheres são umas pérfidas neuróticas desalmadas, que nossas amigas no fundo querem puxar nosso tapete, que estamos cercadas de inimigas.


Depois do rompante selvagem que citei acima, as garotas do colégio são levadas para o ginásio da escola e Tina Fey, que escreveu o filme e interpreta a professora de Matemática mais ferrada do mundo, as força a encontrar e exorcizar os próprios demônios. Num exercício simples, as meninas veem que não só todas já foram vítimas de alguma fofoca ou maldade vindas de uma garota (além de Regina George), como todas também já fizeram fofoca ou alguma maldada contra outra garota (Regina George inclusa). O que isso significa? Que todas as meninas são mesmo seres desprezíveis e sem caráter, ou que esse ódio todo vem de seres humanos – falhos, como somos todos – que ainda não sabem lidar direito com as próprias frustrações e inseguranças e direcionam esse ressentimento para quem está mais próximo e parece ter algo melhor do que ele, seja um cabelo brilhante, uma nota em Matemática ou uma postura confiante?

É desse modo que Meninas Malvadas humaniza a selva que alguns juram ser o mundo das garotas, mostra que na maioria esmagadora das vezes não faz o menor sentido odiar tanto uma garota qualquer e que a existência de uma menina legal nos arredores não é uma afronta ou ameaça direta a tudo aquilo que existe de legal em você. Meninas Malvadas é um filme que estimula a sororidade, ou seja, a irmandade feminina. Essa ideia, dentro do movimento feminista, se desdobra em diversas problemáticas que valem a pena ser entendidas se você quiser se aprofundar no assunto, mas que no momento, de início, interessa extrair que para nós, mulheres, não está fácil e nem nunca foi, mas o fardo é menos pesado quando paramos de brigar entre nós, especialmente se é uma briga que não é nossa.


Por fim, Meninas Malvadas é um filme absolutamente divertido e pouco moralista, com diversas citações brilhantes que elevam a nossa expressão pessoal a uma dimensão diferente e muito mais interessante (além de ser um dos poucos que o roteiro é rico em pérolas tanto no idioma original como na tradução para o português, tanto que não consigo me decidir entre o que é mais legal: fetch ou barro). No dia de hoje, em que ele completa dez anos, você vai provavelmente ler diversas compilações das melhores frases do filme, mas a mais importante, definitivamente, é essa:

“Vocês tem que parar de chamar umas às outras de vadias e putas. Isso só faz com que seja aceitável que os homens as chamem de vadias e putas”.

Meninas Malvadas não é um filme perfeito e nem uma epítome feminista, mas definitivamente não é um filme bobinho. O mundo das garotas não é e nem precisa ser uma selva.