segunda-feira, 28 de março de 2016

Máquina de lavar

Para ler ouvindo:



A televisão foi a primeira coisa a ser trocada. Nesses doze anos já foram duas. Depois foi o móvel da sala: o antigo agora fica no corredor, dando lugar ao aparador de madeira rústica que minha mãe tanto queria. O sofá ganhou outro forro e as cadeiras também; já é tempo, aliás, de trocar tudo de novo. O microondas foi ideia minha, um dia acordei sismada que o nosso estava emitindo radiação. Não tem como confiar num microondas de mais de dez anos. Já a geladeira foi ideia da minha mãe. A nossa antiga, grande, vazava sem explicação e fazia uns barulhos muito estranhos no meio da noite. Era o nosso bicho papão doméstico, que sempre assustava minhas amigas que vinham dormir em casa. Ela foi substituída por outra, bem menor, que inexplicavelmente abria do lado contrário.

Não tinha nada de errado com ela além disso, mas um dia acordei com uma geladeira enorme me esperando na portaria. Minha mãe sismou que aquela era muito pequena e resolveu trocar. Sobrou pra mim administrar tudo isso, ela esqueceu de me ensinar o que fazer quando entregam uma geladeira na sua casa e obviamente esqueceu também de estar em casa para recebê-la. Não bastasse a geladeira, minha mãe comprou um novo fogão. Eu não pensei que esse dia fosse chegar tão cedo. Nosso fogão era velho, caquético, e só acendia com fósforo, mas segundo ela não se fazem mais fogões desse jeito e comprar outro era assinar um contrato dizendo que ela nunca mais ia passar cinco anos sem trocar o fogão. Depois que ganhamos aquele forno elétrico até parei de me incomodar com o antigo e fiquei até meio triste de vê-lo ir embora, mas não muito. Foi uma mágoa que durou até eu ver que o fogão novo tinha aquela boca gigante no meio, excelente para se fazer um arroz em dez minutos. 

Daí tocam o interfone e avisam: tem um fogão e uma geladeira pra você. Eu não sabia o que fazer. Pedi ajuda pro porteiro, a quem eu peço tantas ajudas ridículas que deve achar que sou meio boba, e ele perguntava as coisas e eu só dizia "não sei". O que vocês vão fazer com as coisas antigas? Não sei. Elevador ou escada? Não sei. Não é mais fácil deixar isso na garagem? Não sei. Onde fica o registro do gás? Não sei moço, nem sabia que gás tinha registro. Olá, meu nome é Anna Vitória e eu sou idiota. No fim das contas o fogão novo foi instalado (o porteiro sabia onde era o registro do gás), o antigo foi para a garagem, a geladeira nova ficou no lugar e a antiga foi pro meio da sala. Depois que eles foram embora comecei a chorar, e até hoje, diante dos desafios da vida, eu e Analu sempre ponderamos que pelo menos não é um entregador de geladeiras surpresa no meio do dia.

No fim do último mês trocamos a máquina de lavar, o último resquício do casamento dos meus pais que ainda existia aqui em casa além de mim. 

Gente, a máquina de lavar. Eu poderia escrever um livro sobre nossa antiga máquina de lavar. Pra começar, desde que me entendo por gente a máquina está meio estragada. Cada dia era uma coisa diferente, mas ela nunca esteve completamente funcional. Minha mãe era a única que mexia nela porque era a única que conseguia fazer com que ela funcionasse. Ela tem essa alavanca que em teoria era só puxar para iniciar a lavagem, mas nada é tão simples quanto parece. Não é força, é jeito - dizem - mas era um jeito tão, mas tão específico que parecia bruxaria. Ou pegadinha. Já consegui fazê-la funcionar algumas vezes, no entanto nunca sabia como e muito menos conseguia repetir o feito. Simplesmente acontecia. Minha mãe era a única que colocava a mão lá como se nada fosse e botava a máquina pra funcionar. Além disso a máquina pulava e fazia barulhos horríveis. E quando eu digo pulava, quero dizer que um dia ela apareceu no meio da cozinha, alagando a casa inteira. Quando digo barulhos horríveis, quero dizer ruim o suficiente para assustar Francisco, o poodle, que não se abala com nada e não apenas latia pra máquina como morria de medo dela. Minha avó passou alguns anos acendendo velas pra que ela nunca explodisse com a gente dentro de casa. 

Minha mãe, no entanto, insistia em repetir o discurso do fogão: não se fazem mais máquinas de lavar como antigamente e comprar uma nova é aceitar que a cada cinco anos (com sorte!) terei que sempre comprar uma nova. Na cabeça dela isso economizava mais dinheiro do que gastar uns 200 reais de dois em dois meses com o mecânico, presença cativa aqui em casa. Seu Raimundo frequenta tanto nossa área de serviço que me viu crescer, de tempos em tempos batendo ponto por aqui, repondo peças, perguntando da escola, a faculdade, não acredito que você formou, o que a máquina aprontou dessa vez? 

Eis que no início do ano minha mãe resolveu: quero uma máquina de lavar nova. Assim, do nada. De repente ela não suportava mais olhar a máquina antiga, tudo era ruim, meu Deus esse barulho, não aguento mais, sua avó está certa, a máquina vai explodir. Coube a mim a missão de escolher uma nova, então eu pesquisei, li mil resenhas, e em três dias sabia mais sobre máquinas de lavar do que soube durante minha vida inteira (o que era bem pouco, pra ser sincera). Poderia citar os prós e contras de uma front load contra uma top load, e até sabia o que diabos era uma front load e uma top load. Pensando em tamanho, energia e preço, escolhemos o modelo, fizemos o pedido e esperamos esse novo paradigma acontecer.

De acordo com o site era pra máquina ser entregue no dia catorze de março, mas ainda era fevereiro quando cheguei em casa e o porteiro disse: tem uma coisa aí pra você. Quando chego na porta de casa, lá está ela, uma máquina de lavar surpresa no meio da tarde. Sem entregador! O que você vai fazer com ela?, perguntou o porteiro. Excelente pergunta, seu José, inclusive queria saber se o senhor tem uma sugestão. 

Seu José me ajudou a colocar a máquina dentro de casa e ela ficou ali no meio da sala até minha mãe resolver o que faríamos com a antiga. Até que foi rápido: Marta, nossa diarista, reivindicou a posse da máquina que ela temeu por todos esses anos que trabalhou aqui, e num dia em que eu não estava em casa (glória) ela foi retirada e a nova foi colocada no lugar com pouca cerimônia. Seu destino foi longo e bom... Não a choreis, diria o poeta.

Já a máquina de lavar nova, que bonita ela é. Coube ao Seu Raimundo as honras de instalá-la, o que ele fez meio borocochô, talvez pensando que não poderia mais contar com o dinheiro quase fixo que ganhava aqui em casa às custas da antiga. Ele me chamou dentro de casa pra me ensinar a mexer, pediu que eu prestasse atenção, só faltou dizer que só ia explicar uma vez. Demonstrou todas as funções daquele painel digital bonito, disse o que a gente podia e não podia fazer, ensinou truques, avisou mil vezes pra não deixá-la na tomada sem necessidade, nunca esquecer o botão de play e pause. Agora tenho uma máquina com play e pause, logo eu, vinte e dois anos lidando com uma máquina que tinha uma única alavanca que eu não sabia puxar. Assentia com a cabeça, entendendo horrores, quando na verdade esquecia tudo tão logo ele ia falando. Depois que ele foi embora fui ler o manual e submeti minha mãe à mesma seção de do's e don'ts, tendo certeza absoluta que ela também não prestava atenção em nada e ia fazer tudo do seu jeito.

Então agora temos uma máquina de lavar de verdade e estou experimentando seus benefícios pela primeira vez, maravilhada, como uma dona de casa de classe média dos anos 50. Por conta de todo o jogo de cintura que a antiga envolvia, a problemática da alavanca, os pulos e barulhos e tudo mais, eu raramente lavava roupa. Eu lavo, você estende, era o que minha mãe sempre dizia, e estender roupas é meu calvário particular. Lavar, no entanto, é uma alegria, me acalma. Gosto de separar as cores e os tipos, usar os ciclos certos, exagerar sem querer no amaciante, ficar ali de cara com a tampa transparente vendo tudo girar, as roupas ficando limpas quase que como mágica, o cheiro gostoso que fica quando elas saem dali. Somos um pontinho azul no meio do nada, poeira das estrelas e vamos todos morrer mesmo, muito provavelmente matando uns aos outros, mas mesmo assim fomos longe o suficiente pra inventar uma máquina que lava roupas. Isso é que é evolução.

Falando assim é como se eu lavasse roupas todos os dias, o que é uma mentira. A verdade é que eu sou metódica, o que me deixa completamente incapacitada de dividir a máquina com a minha mãe. Só uso quando ela viaja, porque tem que ser do meu jeito e eu não suporto vê-la ali apertando os botões sem nenhuma destreza, fazendo tudo como acha que deve, e a gente sempre acaba brigando. Ela, com uma autoridade segura de quem faz isso há anos e sabe melhor, e eu que cheguei agora, achando que sei tudo porque domino o brilhante painel digital. Diante da máquina de lavar reproduzimos a mesma dinâmica desses últimos anos, cada uma a seu tempo deixando pra trás aquilo que não era bom e construindo uma história de novas peças, novos cheiros e programações mais avançadas - assustadas diante de tudo que é novo, porém não menos encantadas com a possibilidade de novos ciclos.

Rápido. Dia-a-dia. Delicado. Cama & Banho. Água quente e fria. Play e pause. Que maravilha é a máquina de lavar.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Diálogo?

Às vezes eu lembro de umas coisas aleatórias. Hoje lembrei que o nome do primeiro disco do NX Zero é Diálogo?, assim, com uma interrogação no final. Acho incrível como um sinal de pontuação faz toda a diferença. Eu provavelmente não lembraria se fosse simplesmente Diálogo. Diálogo? deixa as coisas mais dramáticas, como uma conversa que você pega no meio, um casal falando alto num restaurante em que todo mundo fala baixo: 

- Diálogo? Diálogo, Lidiane? - ele diz, logo antes de jogar o guardanapo de tecido no prato e se levantar de repente, fazendo a mesa toda balançar. As pessoas que antes já falavam muito baixo agora pararam completamente de falar para observar a cena. Marcos chegou rápido até a esquina enquanto Lídia cortava mais um pedaço do cordeiro, os olhos fixos no prato, tentando entender o que tinha dito de tão errado. Diálogo, ué. Ele sair assim só mostrava como ela estava correta. 

Eu poderia continuar pelo resto da noite. 

***

O negócio é que eu lembrei que o nome do primeiro disco do NX Zero é Diálogo?, o que me fez lembrar que ouvi NX Zero pela primeira vez num programa da MTV chamado Chapa Coco, com o Felipe Solari e um outro cara que eu sei o nome. A banda estava no estúdio porque era a estreia do primeiro clipe deles. O Di usava camiseta branca com um colar de sementes vermelhas e eu achei ele o maior gatinho, por isso fui assistir o clipe de novo logo que o programa acabou. Essa seria uma lembrança relevante se eu tivesse sido uma grande fã de NX Zero na minha adolescência - a gente sempre tem histórias sobre como foi ouvir bandas importantes pela primeira vez - mas não. Foi só uma coisa que eu lembrei.

Eu estava pensando sobre diálogos (Diálogo?) porque li uma resenha de Batman vs. Superman que dizia já no título: dava pra resolver conversando, e eu sabia que concordava com aquele texto mesmo antes de assistir ao filme. Saindo do cinema repeti a mesma coisa, dava pra resolver conversando, e hoje, quando me perguntaram como tinha sido o filme ontem, disse que um diálogo pouparia Batman e Superman de uma tremenda dor nas costas e Gotham (ou foi Metropolis?) de uma destruição quase completa. 

É uma premissa bem estúpida colocar os dois heróis mais importantes (de acordo com algumas pessoas) para lutar entre si se eles estão fundamentalmente do mesmo lado. Sei lá, os dois não querem o bem e a paz mundial? Na minha módica opinião a gente troca uma ideia antes de resolver as diferenças no braço, principalmente quando esse braço significa quebrar uma cidade inteira. Então eles estão lá quebrando a porra toda e no fim é tudo por causa de um mal entendido. Que poderia ter sido evitado se os bonitões CONVERSASSEM. 

- Diálogo? - pergunta Bruce Wayne sem disfarçar o escárnio enquanto sai do restaurante às pressas com uma lança de kriptonita das mãos - Eu não tenho tempo pra diálogos. - disse, agora com uma voz mecânica e grave que não era mais a sua, mas a de Batman.

***

Eu queria que as pessoas conversassem. Veja bem, conversar é diferente de falar, argumentar, discutir. Conversar, sabe? Diálogo. Uma pessoa fala. A outra escuta. Pondera. Depois responde. É uma troca.

Desde que estourou todo esse rebosteio pelo país tem me incomodado muito a gritaria generalizada, com as pessoas berrando na cara umas das outras aquilo que acreditam e deixam de acreditar, incapazes de ouvir o que o outro lado diz. Acredito que a polarização é uma configuração estúpida para qualquer sociedade, a começar pelo fato de ela não ser real, já que a vida não existe no preto ou no branco, mas num caminho possível entre os dois. Enquanto a gente só ouve quem diz a mesma coisa que a gente e repete só aquilo que a gente já concorda, deixando de ouvir quem está do outro lado, demonizando qualquer posicionamento que fuja à nossa cartilha perfeita de como as coisas devem ser e o que estiver diferente merece morrer, sério, a gente não vai pra lugar algum. 

Imagine aquele monstro do filme, oportunamente batizado de Apocalypse, e é mais ou menos assim que vamos continuar vivendo. 

Entrando no Facebook

- Diálogo? - pergunta Apocalypse, de acordo com o tradutor residente - AJKDHKNNKJHKJFHEIBSKSNKKBGWKGBSODJSINRGKBKBCDHDJJSJSKSDNNSHUAAAAAA [destroys everything in kryptonian monster language]

***

Esse mês eu li Modern Romance, livro sobre relacionamentos na era digital escrito pelo Aziz Ansari (!). Logo no início ele fala sobre a situação ridícula que a modernidade (ou a pós-modernidade, caso você prefira assim) nos coloca que é a de ficar calculando quanto tempo devemos esperar pra responder a mensagem daquela pessoa que a gente gosta. Porque, sabe como é, não dá pra responder muito rápido senão vai parecer que a gente está ali com o celular na mão esperando aquele oi, ainda que a gente esteja. Ninguém quer se mostrar muito disponível e nem ser aquela pessoa que gosta demais. Então a gente espera dez minutos. Vinte. Sete a mais do que a outro esperou pra responder, porque não sou eu que vou sair perdendo caso alguém esteja acompanhando o placar.

Enquanto isso tem dois bobocas de olho no celular e no relógio, perdendo o maior tempo e tendo crises de ansiedade, enquanto tudo seria resolvido com um diálogo. 

- Oi, gostei de você.

- Eu também.

- VAMO SE BEIJAR?

- Bora

A Taylor Swift (lógico) já escreveu mais ou menos sobre essa sensação em The Story Of Us: Now I'm standing alone in a crowded room and we're not speaking / And I'm dying to know is it killing you like it's killing me? 

A parte mais idiota disso tudo é que 1) o maldito do jogo funciona e 2) mesmo sabendo que é estúpido a gente joga junto. Recentemente me vi no meio de uma dessas histórias de mensagens e silêncios calculados, morrendo um pouco a cada vez que pegava meu celular e não via ali nenhuma notificação, pensando que tudo isso seria evitado se eu tivesse um pouquinho mais de coragem de dialogar. Eu tenho esse monte de filosofias, mas infelizmente ainda não sou adepta de todas elas. Por causa desse monte de bobeiras uma história nunca começou, e nem estou dizendo que seria uma boa história, mas seria melhor que esse disco furado na faixa introdutória. 

Algumas histórias não aconteceriam se houvesse diálogo, vide Batman vs. Superman, mas outras tantas se perdem quando a gente escolhe não dizer nada. Já era para eu ter superado esse caso, eu já tinha superado esse caso, mas às vezes eu lembro de umas coisas aleatórias, como lembrei do Diálogo?, disco do NX Zero, que me lembrou de Batman vs. Superman, e da Conjuntura Política Atual, mas também me lembrou de Fresno, e de como aquele moço gostava de Fresno na adolescência, o suficiente para se lembrar, assim como eu, de como tinha ouvido a banda pela primeira vez, e a gente estava no mesmo show, e tudo isso me fez pensar nos nossos diálogos que nunca aconteceram, jamais vão acontecer, e tudo isso me trouxe até aqui. 

- Diálogo? - ela disse, descrente, como se falasse para si mesma ou para ninguém. 


terça-feira, 8 de março de 2016

Você não é obrigada a nada

Oi miga. 

Tudo bem?

Antes de eu dizer qualquer coisa, peço que leia de novo o título desse post. Leu? Ok, agora escuta o que eu tô te dizendo: você não é obrigada a nada. Eu juro. Só pra garantir que você entendeu, repete pra você mesma: eu não sou obrigada a nada. Agora diz isso em voz alta, mesmo que baixinho. Eu não sou obrigada a nada. EU NÃO SOU OBRIGADA A NADA. 

Ok, agora podemos continuar. 


Sabe, sempre que converso com alguma menina sobre feminismo e ela diz que não é feminista embora concorde com sua definição básica (vamos lá: feminista, uma pessoa que é a favor da igualdade econômica, social e política entre os sexos), existe aquele MAS que justifica o seu posicionamento. 

Quando digo alguma menina, estou dizendo, também, eu mesma, que por muito tempo disse que, sim, sou a favor da luta feminista MAS não odeio os homens, MAS gosto de homens, MAS não quero ser homem, MAS gosto de passar batom, MAS adoro moda, MAS quero casar e ter filhos, MAS sonho em ser dona de casa, MAS gosto que abram a porta pra mim, MAS quero continuar me depilando, MAS sou delicada, MAS não gosto de passeatas, MAS não abortaria meu filho, MAS acredito em Deus, MAS não beijo garotas, MAS quero flores e bombons, MAS quero vestir de noiva, MAS quero casar virgem, MAS quero dar pra todo mundo, MAS não quero dar pra ninguém, MAS quero rebolar minha bunda sábado à noite, MAS gostei do disco novo do Justin Bieber, MAS qualquer outra coisa que faça você quem você é. 

Entendo esse seu receio, entendo os motivos que podem levar você a não querer se sentar nessa rodinha, porque eu também cresci cercada desse imaginário coletivo, formado por anos e anos e anos de representação torta e pré-conceitos, que me ensinou que feministas eram bruxas abortistas que, em troca de uma carteirinha, iam tirar de mim meus batons, meus vestidinhos, meu véu e grinalda, e minha felicidade ao dançar Sorry. O que talvez você não saiba, e eu também demorei a saber, é que feminismo não é sobre isso. Você não é obrigada a nada e eu também não. Feminismo é sobre isso. 

Minha primeira epifania feminista, que eu já contei aqui antes, veio através da minha professora de Sociologia do ensino médio. Ela, feministézima, contou que cresceu dizendo que não ia se casar, muito menos se vestir de noiva. Então ela se apaixonou. E foi pedida em casamento. E aceitou. E no meio de tudo isso, ela descobriu que queria se vestir de noiva. Eita, e agora? Ela contou que no início teve todo um conflito de identidade, até que ela viu que isso era uma grande besteira, foi lá, se vestiu de noiva e curtiu cada segundo desse momento. Porque era o que ela queria, e feminismo é isso: a gente é contra a obrigação de toda mulher se casar de branco, com um homem, virgem e imaculada; a gente é contra a obrigação porque a gente não é obrigada a nada. Mas a gente também é a favor, muito a favor, da liberdade, e liberdade é não casar se não quiser e não ser julgada por isso. Liberdade é casar se quiser, com quem quiser. De branco, véu e grinalda, inclusive. 

A gente já tem um mundo inteiro nos dizendo o que fazer, o que ser e o que não ser. Não é um movimento sobre liberdade que vai te obrigar a fazer ou ser qualquer coisa. Com toda a desconstrução e problematização que vem no pacote a gente só quer mostrar que nossos gostos e preferências pessoais não existem no vácuo, elas se constroem de acordo com a nossa socialização e nossa socialização é, sim, machista. Mas você não é mais ou menos livre se escolhe qualquer coisa que esteja "de acordo" com a cartilha machista, porque a escolha consciente te empodera.

Outra epifania que tive foi lendo O Segundo Sexo, da Simone de Beauvoir. O livro não é sobre feminismo, mas sobre a condição feminina, denunciando as condições que, desde o nascimento (nosso e do mundo) colocam a mulher como segundo sexo (!) na hierarquia da vida. Ela diz que ao questionar certas condições, seu argumento é existencialista. 

É do ponto de vista das oportunidades concretas dadas aos indivíduos que julgamos as instituições. Mas não confundimos tampouco a ideia de interesse privado com a de felicidade, ponto de vista que se encontra frequentemente. As mulheres de harém não são mais felizes do que uma eleitora? Não é a dona de casa mais feliz do que a operária? Não se sabe muito precisamente o que significa a palavra felicidade, nem que valores autênticos ela envolve. Não há nenhuma possibilidade de medir a felicidade de outrem e é sempre fácil declarar feliz a situação que se lhe quer impor. Os que condenamos à estagnação, nós os declaramos felizes sob o pretexto de que a felicidade é a imobilidade. É, portanto, uma noção a que não nos referimos. A perspectiva que adotamos é a da moral existencialista. Todo sujeito coloca-se concretamente através de projetos como uma transcendência; só alcança sua liberdade pela sua constante superação em vista de outras liberdades; não há outra justificação da existência presente senão sua expansão para um futuro indefinidamente aberto. Cada vez que a transcendência cai na imanência, há degradação da existência em "em si", da liberdade em facticidade; essa queda é uma falha moral, se consentida pelo sujeito. Se lhe é infligida, assume o aspecto de frustração ou opressão. Em ambos os casos, é um mal absoluto.

Então, ela não vai questionar o que faz uma mulher mais ou menos feliz, porque não existe um critério objetivo para se determinar isso. Ela argumenta sempre no sentido de oportunidades, porque a gente só pode descobrir quem é, o que quer fazer e o que nos faz feliz quando temos a OPORTUNIDADE de fazer tudo. 

Então, quando nós, feministas, nos posicionamos a favor da descriminalização do aborto, não estamos querendo que ninguém aborte. Estamos querendo que, se você quiser ou precisar, você possa abortar com segurança. Quando lutamos pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo, não queremos obrigar ninguém a gostar de alguém do mesmo sexo, mas queremos que quem gostar de alguém do mesmo sexo tenha a oportunidade de viver esse amor em plenitude - de mãos dadas por aí, existindo em livros, novelas e programas de TV com representação justa, se casando no papel, de véu e grinalda ou não. Quando nos rebelamos contra os padrões de beleza, a gente não quer que ninguém deixe de usar batom. Eu adoro batom. Mas não quero viver num mundo onde só é bonita quem usa batom, onde eu preciso usar batom. Eu não sou obrigada a nada. Nem você. 

A gente fala sobre trabalho, estudos e carreira porque esses espaços ainda são restritos para as mulheres, existem portas que precisam ser abertas (ou arrombadas). Isso não quer dizer que você não pode dedicar sua vida a cuidar dos seus filhos. Isso é pra você poder escolher cuidar dos seus filhos OU ser a próxima CEO da empresa. Não é sobre o que é melhor ou pior, é sobre escolhas e oportunidades. O feminismo quer abrir todas as portas para que cada mulher possa escolher por conta própria em qual quer entrar. E depois poder sair e escolher outra. E aí entrar de novo. Ou sentar no meio do corredor e jogar conversa fora por um tempo.

O feminismo é um movimento feito por pessoas, muitas pessoas, com vivências e experiências diferentes. Pessoas que falham e não sabem de tudo e nem acertam o tempo inteiro e estão sempre aprendendo. Então, a gente precisa entender que tudo bem haver discordâncias dentro do feminismo, e tudo bem não ter uma opinião formada, tudo bem admitir que não sabe a resposta, tudo bem questionar. Isso não te faz mais ou menos feminista e ninguém vai querer roubar sua carteirinha. Quer dizer, algumas pessoas vão, mas você não precisa invalidar todo um movimento por conta de uma exceção equivocada. Pode ser que alguma mulher te diga que você é obrigada a alguma coisa, e pode ser que ela faça isso sob o guarda-chuva do feminismo, mas você não precisa sair da roda por causa dela. Você não é obrigada a nada e de repente pode até lembrá-la que ela também não é. Não há nada mais feminista do que dar a mão para sua amiga e dizer que ela é livre, andar junto com ela nesse caminho rumo à liberdade - que não é fácil, por isso precisamos ir juntas.

Então hoje estou aqui pra lembrar que você não precisa fugir do feminismo para ser quem você é, mas se quiser pode fugir também, porque você não é obrigada a nada. 

Beijos de luz.


Update 10/03: Depois que publiquei esse post, com base em alguns comentários e nos muitos compartilhamentos (acima da média com a qual estou acostumada), fiquei pensando se tinha sido realmente clara no post, ou melhor, se todo mundo que concordou com o post tinha realmente entendido o que eu quis dizer com ele. Depois que minha amiga Pássara deixou um comentário aqui ontem, voltei a pensar no assunto e achei melhor fazer esse adendo. Quando digo que não somos obrigadas a nada, não estou dizendo que devemos ignorar tudo aquilo que nos é imposto através da socialização e nem deixar de questionar o quanto dessa socialização quase coercitiva (porém velada) existe nos nossos gostos e preferências pessoais. Com a palavra, Passarica:

Agora antes que eu divague demais e não dê tempo de desmentir EU CONCORDO que ninguém é obrigada a nada, tá? Ainda não saí confiscando batom nem fazendo piquete em estúdio de depilação. Eu só acho que, ainda que não sejamos obrigadas a nada ostensivamente falando (como muito bem dita a constituição), na prática muita das coisas que a gente faz a gente faz porque é obrigada, né. Vamos combinar que eu não me sinto muito feliz e livre todo mês chorando na mesa de depilação, ainda que eu tenha chegado lá com as minhas perninhas. Acho que mais importante do que acreditar que ~não somos obrigadas a nada~ é perceber que SOMOS SIM, e desconstruir o tanto quanto possível, mesmo que eu não acredite em uma desconstrução total de quem viveu a vida toda sob o peso da socialização machista.

Outro ponto é que eu não desprezo e nem diminuo a importância do feminismo ou de se afirmar feminista. Acho importante que, como disse nossa deusa-louca-feiticeira, Chimamanda Adichie, sejamos todas feministas. Disse que ninguém é obrigada a ser feminista porque, bom, ninguém é mesmo. Mas como lembrou, de novo, a Paloma e também a Craudia num papo que tivemos, quando não lutamos contra a opressão - no caso aqui o machismo -, ainda que não estejamos de acordo com ele, estamos deixando ele vencer. Então se você é contra o machismo e o patriarcado e toda essa trupe do mal, se você acha que isso deve acabar, então, bom, você é feminista.


- Eu não preciso dizer que ser livre não te dá o direito a desrespeitar a liberdade dos outros, né? Obrigação é pagar imposto, dar preferência ao pedestre e deixar a esquerda livre, mas também é respeitar os outros (e as outras!), entender que eles têm tanto direito de ser livres como você.

- Quando eu digo vamos juntas eu digo vamos juntas mesmo. Quer conversar sobre o post ou tirar alguma dúvida ou contra-argumentar esse texto (sem agressividade)? Comente nesse post ou escreva para mim: rocha.annavitoria@gmail.com

sábado, 5 de março de 2016

O prego (ou: um discurso de formatura)

Então eu formei. 

O discurso a seguir foi escrito por mim para ser lido na cerimônia de colação de grau, que aconteceu no dia do meu aniversário de 22 anos. Tenho um fraco por discursos de formatura e voltei aos meus favoritos (Neil Gaiman, Jonathan Franzen (sim), Marina Keegan e Rory Gilmore) em busca de inspiração, mas quando vi estava, de novo, falando da Amanda Palmer. Eu não ligo para solenidades, mas naquela noite, cercada de amigos queridos, sendo assistida pela minha família amada, vestindo uma linda beca vermelha, me senti extraordinariamente pronta. Algumas vezes achei que a formatura chegou muito rápido, e em outros momentos parecia que não chegaria nunca. Dia 26, no entanto, senti que tudo aconteceu na hora certa. Foi uma noite muito feliz e gostaria de dividir um pedaço dela por aqui, porque esse blog me acompanha desde o início do ensino médio (!) e sabe Deus onde estaria se nunca tivesse começado a escrever. 

O PREGO
(inventei esse título agora)

Só sei tirar foto sozinha fazendo papel de idiota
Com todo o respeito a essa instituição e a solenidade acontecendo aqui, mas a verdade é que um diploma não significa nada. É só um pedaço de papel, e, como aprendemos em uma ou várias aulas, papel aceita tudo. E se um papel bonito e timbrado num canudo aveludado pode aceitar de tudo, o que dizer a respeito do papel jornal, com sua tinta que mancha nossos dedos, e aquele cheiro típico de peixe que aparece depois de vinte e quatro horas? Dá pra piorar: o que dizer da internet, que além de aceitar tudo, aceita qualquer coisa, de qualquer um?

Nossas mães diriam que a gente poderia ter escolhido melhor. 

No entanto, quatro anos depois, aqui estamos. Jornalistas. Não é um diploma, um pedaço de papel - muito bonito, aliás -, que torna isso mais ou menos real. Quem possui o poder de fazer isso somos nós, cada um no seu tempo. Alguns inclusive já chegaram sabendo, o curso só serviu para sedimentar a certeza. Pode ser que outros ainda precisem de mais uns dias, ou até anos, pra descobrir. Mesmo assim, cada um da sua forma, todos tivemos (ou ainda vamos ter) os nossos momentos - aquele momento - em que simplesmente soubemos: caramba, eu sou jornalista!

Pode ter sido no primeiro dia de aula, ou no último, na defesa do TCC ou naquele em você finalmente pegou o jeito do Scribus. Pode ter sido depois do primeiro chá de cadeira, o primeiro bolo, a primeira fonte desaparecida, o primeiro telefone batido na cara - todo mundo sabe que jornalista é aquela pessoa que precisa falar com todo mundo e com quem ninguém quer realmente falar. Pode ter sido num fechamento do Senso, ou melhor, naquele dia que você sentiu saudades de um fechamento do Senso. Era horrível, mas também era muito bom, né? Caso um dia bata uma insegurança, não se esqueça de que você passou em Teorias I. E II. E PEX. I e II. TCC também, vocês conhecem a história. 

Se alguém aqui ainda não se sente jornalista, basta lembrar das reclamações, porque a gente passou quatro anos - ou mais - reclamando. Dos textos, dos trabalhos, dos prazos, da quantidade de caracteres, das pessoas, das fotos, do alinhamento dos textos, das logos, das pautas, e de novo dos prazos, e mais um pouco das pessoas. Jornalista, aliás, é o primeiro a reclamar de qualquer coisa, principalmente de outros jornalistas, do jornalismo, e da própria condição de jornalista. 

Foi o George Orwell que disse que jornalismo é publicar algo que alguém não quer que se publique, aquilo que incomoda. Todo o resto é propaganda. Nossa profissão é incômoda, para os outros mas principalmente para nós. Ao longo desses oito semestres, aprendemos que quase nada é o que parece e que é muito difícil mudar o mundo. Aprendemos que as pessoas mentem, nem sempre colaboram, e que existe um interesse por trás de tudo. São necessárias umas cinquenta fotos antes da perfeita, matérias legais caem porque alguém não respondeu um e-mail a tempo, tripés são pesados, gravadores falham, caracteres sobram, a internet cai e alguns programas fecham sem salvar o que foi feito. Às vezes as pessoas são horríveis, os ângulos retratados não são honestos, e como o papel aceita tudo é muito fácil construir versões diferentes de uma mesma história e nem sempre vai haver espaço pra nossa voz. A profissão é difícil, perigosa, desconhece feriados, todo mundo sempre acha que é só escrever uns textinhos e dizer boa noite, e o salário ó…

Mesmo assim, de novo, aqui estamos. Por quê? 

Eu precisava muito desse momento, fiquei feliz que não foi preciso implorar por ele
Amanda Palmer, uma artista que já foi stripper, estátua viva, cantora e agora também escreve, contou em seu livro a história de um cachorro e seu dono. Era mais ou menos assim: um homem passa e escuta um cachorro ganindo de dor. Vendo a situação ele pergunta pro dono por que o cachorro está chorando, e o dono responde que é porque ele está sentado em um prego. “Mas então por que ele não levanta do prego?”, pergunta o moço. “Porque ainda não dói o suficiente”, diz o dono. 

O jornalismo é incômodo porque a zona de conforto não é notícia. Outra historinha, que ouvimos algumas vezes em sala de aula, diz que a notícia é quando o dono morde o cachorro e não o contrário. O mundo anda cada vez mais complicado, viver é complexo, e o jornalismo nos leva a ver as coisas de modo a doer o suficiente, porque só assim a gente consegue levantar do prego. E é só levantando do prego que podemos começar a pensar em mudar o mundo. 

Que esse incômodo vindo das coisas que não podemos desver ou ignorar nos possa levar sempre adiante, e que ao levantar do prego possamos ganhar as ruas e estar em contato com histórias reais, de pessoas reais, que nos ajudem a construir mensagens com poder de incomodar tanto os outros, de jeitos bons e ruins, que a sociedade como um todo se veja obrigada a sair do prego, seja ele qual for. E então quem sabe que rumo a vida tomará?

Não é um diploma que nos torna jornalistas, assim como não é uma palavra escrita numa folha de jornal que torna uma notícia verdadeira para alguém. Aprendemos que é a credibilidade faz isso, e acredito que tudo que passamos nos dá crédito o suficiente para nos afirmarmos jornalistas e validarmos aquele pedaço de papel timbrado - e não o contrário. Espero que doa o suficiente.

A última!
- Como todas as fotos bonitas e originais que já estiveram nesse blog, as fotos desse post também foram feitas pelo super Felipe Flowers.