"Essa coisa de ser adolescente é realmente muito ampla, porque não existe uma fórmula exata, porque é sinônimo de ser pessoa. Eu costumava achar que seria uma pessoa quando adolescente e outra quando adulta, mas agora fico pensando que se eu continuar basicamente a mesma pessoa que sou agora quando adulta, isso não seria algo completamente incomum ou horrível. Tipo, eu já conheci adultos que são como eu."
Passei e ainda passo muito tempo da minha vida em contato com a realidade dos adolescentes americanos. Antes de eu chegar a adolescência eu já gostava muito de filmes, séries e livros teen, principalmente os americanos, e isso continuou durante a minha adolescência de fato e permanece até agora, nesse limbo da vida em que eu tenho conta no banco e hora pra voltar pra casa. Embora os sentimentos da juventude sejam mais ou menos universais, o resto do universo daquelas histórias sempre foi muito diferente do meu. A graça disso está no fato de que passei tanto tempo nessa realidade paralela que é como se eu tivesse feito parte desse mundo em outra vida: tenho intrincadas em mim memórias forjadas de bailes de primavera, musicais, jogos de beisebol e festas com copos vermelhos como uma daquelas mentiras que a gente repete por tanto tempo que um dia esquece que nunca aconteceu.
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Ainda faço um post com meus filmes high school favoritos |
Foi por isso que fiquei tão curiosa quando a Dayse Dantas lançou Nada Dramática, um YA brasileiro que fala sobre uma experiência de ensino médio parecida com a minha. E quando eu digo que eu vivi tudo aquilo que Camilla, a protagonista, passou, não estou exagerando: os personagens vem pra Uberlândia fazer o vestibular da UFU! Nunca imaginei que leria uma história assim que não fosse em um post do meu blog.
O livro se passa nos últimos meses do terceiro ano de Camilla, aluna de um dos melhores colégios de Goiânia, que divide sua atenção entre os estudos obsessivos para o vestibular, os contos que posta em seu blog (livro só de histórias da Agente C: já quero), e os dramas vividos por seus amigos, os quais ela tenta não se envolver, mas nem sempre consegue. Meu ensino médio foi bem sem graça e com poucas emoções, totalmente diferente daquele que eu encontrava quando chegava em casa e ligava a TV na Warner. Não tive inimigas, rolos com colegas de sala, e nem fiz nada que rendesse papo pros outros nos corredores. E eu estudava numa dessas escolas enormes, onde eu tinha a impressão que todo mundo era muito rico e pensava muito em vestibular.
Eu também pensava muito em vestibular, leitores antigos devem lembrar. Pensava tanto que os poucos dramas que vivi na escola estão todos associados a estresse por conta de provas e futuro, e me vi muito nos questionamentos da Camilla e de suas amigas, que ficam nesse embate entre reconhecer que o vestibular é só uma prova e não é o fim do mundo não passar, mas ao mesmo tempo não conseguem ter paz diante da possibilidade de não serem aprovadas numa federal. Aquela coisa de pensar que não é nada demais, não, imagina, mas eu vou me esforçar ao máximo pra passar só por garantia.
Na escola onde eu estudei, o terceiro ano ficava numa unidade diferente do resto do ensino médio, o que contribuía para a sensação de que estávamos num espaço descolado do resto da realidade, em que as aulas começavam com uma contagem regressiva tétrica pro ENEM e as pessoas puxavam papo perguntando qual era a nota de corte do seu curso. Eu também ficava a tarde inteira na escola, alguns dias estudando e em outros tantos perdendo tempo jogando conversa fora nas mesinhas da cantina, jurando a cada cinco minutos que daqui a cinco minutos eu voltaria para as listas de exercícios.
Nas últimas semanas voltei a frequentar a escola que estudei porque estou trabalhando num projeto de simulação deles, que eu inclusive participei quando era aluna. E uma das etapas desse trabalho envolvia entrar na salas e fazer a divulgação do projeto, que a gente organizou como uma pequena aula sobre ONU, simulações, etc. O que eu tirei dessa experiência de quase professora foi perceber que pouca coisa mudou. Foram muitas salas, muitas turmas, mas poderia ter sido meu 1º ETA, o 2º FI ou o 3º CAPA, com os engraçadinhos do fundo, as meninas bonitinhas, os meninos bonitinhos, os caras estranhos, aquele pessoal que sempre dorme e os professores que desenham os mesmos mapas deformados nos quadros.
Percebi também que da frente da sala o professor enxerga tudo, então queria me desculpar por todas as aulas que passei lendo ou jogando stop com meus amigos - eu poderia jurar que eles não estavam vendo.
E embora esteja tudo absolutamente igual eu deixei três anos atrás, ao olhar aqueles alunos de moletom e cara de gripe mesmo com os quase 30º que faziam no resto da cidade, não pude me distanciar da sensação de que eu tinha vivido aquilo em outra vida muito, muito distante. A começar quando me pediram pra ir no banheiro e eu demorei um tempo pra assimilar que no ensino médio a gente tem que pedir permissão pra algo tão absolutamente banal como ir ao banheiro. Não consigo conceber uma realidade em que eu passava seis horários inteiros e intermináveis assistindo aula (e sempre tinha a possibilidade de um dia ter duas aulas de matemática e uma de física numa manhã só), com provas e simulados nos sábados e a perspectiva de tardes inteiras na midiateca pela frente. Aliás, eu acho absolutamente incrível (no sentido de ser impossível crer) que eu já tive uma carga horária pesada de matemática e física na vida, e quando lembro que passei por isso (sem pegar recuperação!) quero estender a mão pra mim mesma num gesto de autocongratulação.
Por me sentir tão distante desse cotidiano escolar, fui surpreendida pela forma intensa com que Nada Dramática me transportou novamente para a época da escola, conseguindo superar a experiência de, literalmente, voltar para aquelas salas de aula geladas. Era apenas o quinto capítulo do livro e parecia que eu estava deitada no chão do Brooklyn, espaço que era meu ponto cego com minhas amigas - um vão no canto do pátio que parecia uma piscina vazia e um dia foi palco de arena, mas que em 2011 era o lugar onde íamos na hora dos intervalos lagartixar no sol, comer pizza e julgar as pessoas. Consigo sentir a exaustão do mundo acumulada na cabeça, a vontade de evitar ao máximo o assunto vestibular, mas ao mesmo tempo só conseguir falar disso, e também o sonho (acompanhado de medo) com o dia que lembraria daquilo como uma realidade muito, muito distante.
Eu não fazia a menor ideia do que seria a minha vida no ano seguinte, e, assim como a Camilla, sentia que tudo era, de certa forma, uma despedida. Com razão, porque sair do ensino médio e da escola foi deixar para trás a vida da forma como eu conhecia até então para viver um outro paradigma de existência, sem matemática, sem física e sem ter que pedir permissão pra ir no banheiro. Eu já sabia disso com 17 anos, e não pude evitar um certo ressentimento comigo mesma por ter a impressão de que eu não tinha vivido aqueles anos de verdade, com todas as experiências que eu tinha direito. Afinal, eu não tinha passado anos vivendo o ensino médio indiretamente por meio de filmes, livros e séries para chegar lá e passar o tempo brincando de "o que você queria comer agora?" com meus amigos. Tinha?
O que eu mais gostei no livro foi a forma como ele me fez ver que, independentemente de dramas grandiosos e revoluções, minha experiência na escola foi significativa, única e intensa à sua própria maneira. Não foi como um filme do John Hughes ou uma série da CW, mas tive minha cota de garotas psicopatas, amores platônicos e até pequenas insurgências revolucionárias - como não lembrar do dia que minha sala se voltou contra um secretário da cidade e minha amiga apontou o dedo na cara dele citando Marx? - e eu não acho que trocaria as minhas turmas malucas (e sempre odiadas pela maioria dos professores, mas amadas pelos mais legais), as guerras contra o ar condicionado, os intervalos no Brooklyn e todas aquelas tardes em que eu jurava que a pausa para o café seria de cinco minutos, por qualquer outra história.
"Eu quero pra sempre lembrar que essa foi uma época difícil, e frustrante, e legal, e idiota, e louca, e tudo quanto é tipo de adjetivo que existe por aí. E não quero só lembrar como nostalgia que nem o povo gosta de ficar fazendo. Eu quero manter tudo bem vivo, tudo bem real, na intensidade verdadeira das coisas. Não quero que fique preso na minha memória como uma época de completo pesadelo, ou uma época de bela juventude, eu quero tudo junto, tudo o que foi. Mas a cada segundo que eu tento lembrar, menor as coisas parecem ficar, como se eu estivesse em um balão subindo e subindo, e olhando para minha casa, tentando reconhecê-la em meio ao mundo, mas por mais que eu tente focar, ela acaba se misturando com todo o resto."