Papai não se cansa de dizer que acha que é uma falta de respeito e decoro enorme essa coisa de ir de chinelo pra escola. Na época dele, sempre ouço essa história, sair de Havaianas era mico dos grandes, só isento de reprovação para aqueles que haviam estourado o dedão do pé jogando bola. O patriarca Rocha chegou a dizer que, se fosse ele diretor de uma escola, proibiria o uso de bermuda e chinelos. Aí ele me vê quase todos os dias saindo do colégio com minhas calças de malha largas, que mais parecem de pijama (e muitas vezes são) e minhas queridas Havaianas roxas, e fico imaginando o quanto ele deve se controlar pra não brigar comigo, como faz sempre que estou de moletom quando na rua a média é de uns 35ºC na sombra. Tem dias que ele só olha para meus chinelos e resolve reclamar das minhas unhas pintadas de rosa, mas eu sei o que ele realmente queria criticar. Ah papai, esse amante do decoro, o que diria se visse sua menininha de chinelos, calça quase-de-pijama, moletom e ainda por cima estirada no chão da sala de aula?
Tenho amigos que desde o começo do ano tem essa mania de deitar no chão da sala na hora do recreio. No começo, confesso, ficava olhando meio indignada, tentando me manter firme no pedestal da dignidade, matutando comigo mesma que a pessoa tem que estar muito fora da casinha, perdida na vida e desesperada para se jogar no chão assim, na frente de todos, e ali ficar, feito uma leitoa cansada. Só que um dia desses, pra variar, eu estava numa crise daquelas de sinusite e passando mal pra caramba. Minha cabeça pesava e doía tanto que minha impressão era que mais cedo ou mais tarde eu não ia conseguir mais sustentá-la firme no pescoço e ia cair fungando num canto. Na hora do recreio, cansada de sofrer, peguei minha mochila, enrolei meu moletom como um travesseirinho, e me deitei ali no chão da sala, com os olhos fechados e cara de sofrimento, para ver se melhorava. Mil pessoas entraram, me olharam ali, e, naturalmente, me julgaram. Mas quando eu levantei, estava bem melhor.
Foi assim que aos poucos eu fui me tornando adepta à chão-terapia, e vou contar uma coisa pra vocês: chão é vida. Essa coisa de ficar sentada o dia todo coloca minha coluna em frangalhos, ainda mais porque eu não me encaixo direito na cadeira da escola, porque tenho pernas compridas, e por causa disso fico toda torta e de mal jeito. Ano passado, cansada de parecer uma velha reumática aos 16 anos, comecei a fazer pilates e foi a melhor coisa que me aconteceu: as dores sumiram quase que por completo e eu podia suportar seis horários de aula e uma tarde de estudos na midiateca sem voltar pra casa gemendo. Só que com a loucura de vestibular, tive que abandonar minha ginastiquinha feliz no início do ano, e desde então tenho penado. Ainda bem que existe o chão.
Aí a gente pensa que o vestibular já nos tirou tudo - tempo para ver filmes, sonhos bons, tardes de sono, tempo para ir ao salão, vontade de viver - até se pegar deitada no chão da sala de aula, com as pernas apoiadas numa cadeira, se alongando ali na frente de todo mundo. Nesse momento, você percebe que a falta de dignidade desconhece limites e o buraco é sempre mais embaixo. No entanto, toda essa desglamurização em classe pública se torna pouco importante diante dos benefícios do chão. A gente deita, se estica, coloca as vértebras no lugar e se estrala inteira, e num lapso de segundo percebe que o mundo é bom. 15 minutos de chão e meus problemas quase somem, estou pronta pra mais duas aulas
Em minha defesa, não tenho muito o que dizer além disso. Resolve argumentar que a terapia tanto funciona que já consegui novas adeptas, que de início me olhavam feio, ali esparramada, e que agora me acompanham no nosso ritual desesperado de recreio? Sempre que estou fatigada e de mal com a vida me estiro no chão, fico ali alguns minutos com a coluna no lugar e as pernas esticadas, olhos fechados e respirando fundo, até que as coisas voltem a ter sentido e eu consiga arrastar meu corpinho por esse mundão de meu Deus. Ensinei a técnica para minha mãe e não é raro o Chico flagrar nós duas esticadas na sala, uma parecendo mais maluca e fora de si que a outra, mas ela não tem reclamado do resultado. Recentemente descobri também que dormir no chão é uma beleza: num churrasco de família, me deitei ali na beirada da piscina e fiquei dormindo por toda uma tarde, e acordei renovada.
Agora que contei meu segredo, vocês já sabem: em caso de emergência, se estiquem no chão.