quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Na praia


Desço no aeroporto de qualquer cidade turística no litoral e já procuro um agente uniformizado pra me entregar o certificado de inadequação, que costuma chegar antes das malas. Meu cabelo infla progressivamente com a umidade inesperada - e nesses dias de agostosetembro, já até meio esquecida - enquanto encaro, aflita, a esteira de bagagens. Minhas malas nunca foram extraviadas, mas eu sempre saio do avião tendo certeza absoluta que dessa vez o azar não me escapa.

Felizmente, mais uma vez, não foi dessa vez, e, com minhas tralhas já no carrinho, ando pelo aeroporto sentindo as roupas me grudarem no corpo e os pés inflarem dentro dos sapatos. Fica evidente naquele momento que eu não pertenço àquele lugar, ou pior, que eu não mereço aquela cidade. Eu e meus jeans com stretch (necessários para meus contorcionismos desesperados em busca de conforto numa poltrona de avião), eu ali de camiseta preta do Darth Vader, tênis e meia pra coroar, eu com minha franja ridícula deformada pela umidade relativa do ar a 94% - que eu ouso odiar bem baixinho, mostrando mais uma vez que eu não tenho o direito de estar ali. 

You can't sit with us, sussurra a brisa do mar. 

Um banho gelado e uma noite de sono compõe o intervalo de tempo que eu preciso pra me adaptar, e são suficientes para que no dia seguinte eu já me sinta ridícula por ter levado uma mala tão grande quando, de verdade verdeira, tudo que eu preciso pra ser feliz nos próximos dias são um par de havaianas, biquínis, protetor solar e um short jeans. Ficam esquecidos no armário aquele vestido mais arrumadinho, daquela cota do vai que né, a sapatilha vermelha, a camisa de manga comprida (qual o meu problema?) e um necessaire inteiro de maquiagem, tudo automaticamente obsoleto quando penso na minha canga de bolinhas comprada em Ipanema, que me protege da areia, serve de bolsa improvisada e faz as vezes de inspiradíssimo acessório contemporâneo quando enrolada no pescoço. 

As pessoas que me conhecem dizem que eu não tenho cara de quem gosta de praia, e eu sempre respondo que isso é porque elas não me conhecem na praia. Ainda sou eu, claro, porque eu que insisto num filtro solar 60 e quase nunca fico no sol, e ainda sou eu que procuro desesperada por uma ducha de água doce sempre que saio do mar. Mas, na praia, eu sou a pessoa que fica deitada onde as ondas quebram, por horas e horas até, se me esquecerem ali. Na praia eu que ensino as pessoas a flutuarem olhando o céu, e digo coisas como você tem que relaxar o corpo e confiar na água ou presta atenção no ritmo das ondas e esquece o resto. Eu receito goles acidentais de água salgada pra curar gripe e constipação, e juro de pés juntos que já fui curada de dor de garganta depois de levar um caldo desses de perder o rumo de casa.

Na praia eu sou uma pessoa que quase acredita em astrologia, porque meu signo é peixes e no mar eu me sinto em casa. 

O mar de Maragogi tem a maré baixa na maior parte do dia. A gente anda até o meio dele, até quase chegar na África, e a água não passa dos joelhos, com ondas que quebram antes mesmo de serem ondas o suficiente pra quebrar. À medida que a tarde avança, o mar avança com ela, e naquele primeiro check-point a caminho da África a água já chega no umbigo, e antes de quebrar as ondas já ultrapassam a minha cabeça. Nesses últimos dias, às cinco e meia da tarde, todos os dias, eu corria pro mar e assistia o dia ir embora deitada na água de barriga pra cima, só olhos, nariz e dedões do pé pra fora daquela água quente como água de chuveiro do mar de Maragogi. Ao meu redor tinha um casal, com o mocinho ensinando a mocinha a soltar água pelo nariz na hora de mergulhar, enquanto um homem de meia idade nadava dando braçadas na água, pra lá e pra cá. 

As ondas levantavam e abaixavam minha cabeça num ritmo regular, e meus ouvidos se enchiam e esvaziavam de água de acordo com esse compasso. Por causa disso eu oscilava entre estar ora ciente dos barulhos do mundo, e ora surda por submersão. Era como se estivessem me sintonizando pra dentro e pra fora da realidade, e nesses momentos eu tinha um delírio que ia mudar de vida, viver de luz e de arte, enterrar meu iPhone na areia, nunca mais usar calça jeans e estar sempre com flores no cabelo, franjinha nunca mais. Eu ia parar de comer carne e lasanha congelada, tomar menos café e aprender a gostar de água de coco, poderia começar a correr no parque e comprar uma bicicleta. 

De barriga pra cima no mar, olhando o céu meio lilás, e a lua que apareceu antes do sol ir embora de vez, não havia pessoa no mundo que eu invejasse, porque nenhuma delas era eu, e ser eu naquele momento estava bom demais. Saía da água feliz e contente comigo mesma, ainda que meus objetivos e resoluções nunca durassem tempo suficiente pra eu esquecer de tirar uma foto da paisagem pra postar depois no Instagram. 

Por mais que a cada noite eu deitasse minha cabeça no travesseiro pensando que tinha um dia a menos no paraíso, com certeza absoluta que não suportaria viver um minuto só na minha cidade feia, seca, suja e sem mar, foi com uma satisfação quase obscena que eu vesti meus jeans com stretch no dia de ir embora. Meus tênis pareciam simplesmente certos nos meus pés, meus poros, que até então tinham se escondido, pediram uma camada de base no rosto, e eu pensei que a vida é muito melhor porque o delineador existe. Tomei café da manhã já nos meus trajes civis, mas no restaurante do hotel as pessoas estavam seminuas e cheirando a protetor solar, certamente me olhando com dó - enquanto eu só conseguia pensar que era muito bom não estar com areia grudando no corpo. 


Gosto de passar férias na praia porque é um jeito que arranjei de, sem querer, tirar umas férias de mim. Is not as much a matter of travelling as of getting away, escreve a George Sand, e eu acho que todo mundo precisa de uma folga de si mesmo de tempos em tempos. Which of us has not some pain to dull, or some yoke to cast off? Existir é cansativo, por isso gosto tanto de, nesses dias a beira-mar, acreditar que posso mesmo ser uma dessas pessoas que não comem nada congelado, não usam jeans e muito menos se importam com celular e e-mails não lidos. Eu sei que não vou ser assim, ao menos não agora, ao menos não por muito, muito tempo, mas é uma ilusão quentinha como aquele mar - que graças a Deus enche o saco na mesma velocidade que minha pele sucumbe por excesso de sal, e nem as duchas são suficientes pra expulsar minhas alergias - uma metáfora barata em forma de dermatite de contato. 

Confiro os cadeados da mala pela última vez antes do despacho, penso no que eu preciso fazer caso elas sejam extraviadas, e me sinto muito satisfeita comigo mesma por dessa vez ter lembrado de pegar uns grampos caso minha franja saia do controle. Voltar pra mim é tão bom quanto chegar em casa, e eu senti quase tanta falta dessa paz interior como senti da minha própria cama. Bom mesmo seria se eu tivesse um mar na minha porta e pudesse descarregar os efeitos colaterais de mim mesma pelo menos a cada quinze dias, mas estar com o cabelo no lugar já é um consolo que me sustentará até as próximas férias.

6 comentários:

  1. Que post lindo! Claro que senti muitas sdds lembrando da gente fervendo em Ipanema. Nunca vou me conformar que ninguém filmou nosso momento ~máfia correndo em direção ao mar~. Eu sou tipo você: Quando estou na praia, só quero saber dela. Quero rolar, quero nadar, quero tomar água do mar E, de vez em quando, água da bica junto com mate gelado. Mas quando visto a roupa para ir embora e passo o resto das horas sentindo areia dentro do meu útero eu rapidamente lembro que não nasci para essa empreitada. Uma coisa é gostar de montanha russa. Outra é morar no parque de diversão. Flores no cabelo fazem bem às vezes, mas enterrar iphone na areia e viver de luz não é meu estilo de vida, HAHAHA. E: a definição de estar infinito é certamente essa ideia de não invejar ninguém porque ninguém é você. Céus, como-é-bom-sentir-isso! (E pode ter certeza que seu instagram inteiro estava bem afim de ser você naqueles momentos, HAHAHA!)
    Beijos! Te amo!

    (Que bom que voltou!)

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  2. Eu não sou lá muito fã de praia, penso na areia grudando, o rosto melado de protetor 60, o cabelo à la medusa... E não.

    Mas quando vou pra praia, e de preferência uma com mar calminho, sem onda, e fico boiando por horas, também escutando o mundo num segundo e escutando nada no seguinte, me sinto ótima... Só não me sinto ótima quando saio do mar, vou pra casa, tomo aquele banho e vejo que queimei o couro cabeludo e a testa.

    De qualquer forma, ultimamente ando numa vibe de não comer coisa industrializada, nem beber, nem ficar em rede social, nem nada. Aí aguento assim por um tempo, e depois tudo desaba. Vai entender.

    Adorei o texto. E adorei as fotos no Instagram.

    Beijos!

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    1. Ps.: te indiquei em um meme literário (http://ohsofangirl.blogspot.com.br/2014/10/taylor-swift-book-tag.html). Bjbj.

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  3. Aiii... não acredito que você chegou tão perto de mim! Eu moro em Alagoas, e sei desse paraíso que você tá falando hahaha Não é por morar aqui, mas acho Maragogi um dos lugares mais bonitos que eu já vi :)
    Eu nasci em Minas Gerais. Vivi lá até os meus doze/ treze anos e depois tive que me mudar pra cá. No começo achei tudo muito diferente, principalmente o clima. Mas como eu sempre sonhei em morar perto de praias, isso meio que me confortou. Daí eu não passava um final de semana em casa ou em outro lugar que não fosse no mar, boiando e esperando a vida passar hahahahaha Lembro que uma vez uma senhora começou a gritar achando que eu tava morta porque tava boiando faziam horas...
    Ai o tempo passou e eu me acostumei com a visão do mar todo santo dia. Passo por ele diariamente, mas pergunta qual foi a última vez que eu tomei um banho? Fazem anos!
    No fundo, lá no fundo eu ainda me sinto um pouco estranha por aqui, e ainda é como se eu sentisse saudades de casa, mesmo estando na minha há quase dez anos.
    Louco não?

    Beijos Anna :)

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  4. Tirar férias de mim mesma... Realmente seria ótimo. Tirar férias da minha vida em geral, num lugar totalmente diferente da minha cidade - e com praia, claro ^^

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  5. Que delícia de texto, Anna!

    Deu vontade de me teletransportar para a praia e ficar por lá, já que faz anos que não coloco os pés na areia. Uma das coisas que eu mais amo nessa vida, é o cheiro de maresia e a lembrança que vem com ele, além de milho com manteiga no potinho, haha!

    Beijos!

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