sexta-feira, 9 de abril de 2010

Obituário.

Nasceu no sopro, numas conversas, numas sugestões, num dia qualquer d'um mês que não se tem nota. Cresceu entre telefonemas e identificações inesperadas e imediatas, embora tenha sido evitado, ou melhor, visto com cautela, pois pouco se sabia sobre suas dimensões, intenções e ao que de fato vinha. Sua infância fora superprotegida, vigiada, ainda que vez ou outra escapasse do cativeiro para dar uma volta e tomar parte em sonhos.

Era bom, era leve, tanto, mais leve que as palavras, que quase não era ditas. Não aprendera a comunicar-se tão cedo, já que crescera num meio fechado e com poucos convivas para trocar experiências. Mas era leve, era bom, e nem fora notado quando saíra da jaula em que vivia e fizera-se constante; primeiro discreto, mas logo ganhou asas.

Ingênuo, pensou que conhecia muito do mundo, mas na verdade vivera tanto tempo enclausurado que quando pode enfim inspirar fundo naquela atmosfera que ele tanto ansiava, de repente, não mais que de repente, faltou o ar. Asfixiou-se. Doeu. Apertou muito os olhos porque temia o que lhe aguardava. Percorrera um tortuoso túnel onde tivera contato com palavras, sensações, sentimentos com os quais nunca lidara antes. Quando percebeu, bateu com força no fundo do mar. Onde estava a resistência do ar quando mais precisava dela, para impedir seu tombo, o salto de cabeça? Faltou o ar, faltou o ar.

Abriu os olhos e, diante do que viu, podia respirar, profundamente, embaixo d'água.

Galileu enganara-se ao dizer que o peso não importa quando se cai em queda livre. Bateu no fundo, depressa, pois havia pilha, havia espaço de sobra e vontade; peso. Entretanto, essencialmente, era tão leve, mais que as palavras, e já que quem puxa aos seus não regenera, flutuou até a margem e seguiu o que dizia a canção: aponta pra fé e rema.

Era jovem e destemido e talvez fosse esse o seu mal. Ninguém avisou-lhe dos perigos de viver à deriva, nem que isolar-se em uma ilha poderia ser nocivo, ainda que sempre lançasse ao céu fagulhas multicoloridas como se quisesse dizer para aqueles que esperavam por ele na margem "Ei, não se esqueçam, eu estou aqui!"

A ilha fê-lo tão tão seguro de si que passou a ocupar-se com outras coisas além de descobrir-se, o motivo original de toda aquela empresa. Explorou a mata ao redor, catalogou os peixes da região e chegou a aventurar-se por outras áreas e ilhas ali por perto. As fagulhas ficaram mais e mais ausentes e não era raro que aqueles que o conheciam pagavam-se a olhar para o céu, como era de costume, e pensavam com seus botões, "cadê aquele brilho que estava aqui?"

Ao passar de anos, a ilha distanciava-se mais e mais da margem, mas sem dar sinal de atividade. E se de longe não se via nem fumaça, se já não se ouviam seus sinais, como assegurar de que vivia, posto que nasceu no sopro, como chama e, quem diria, destinar-se-ia a um dia esvanecer?

A morte surpreendeu um dia que sonhava.
Ao pôr-do-sol, desceu entre sombras fiéis
À terra, sobre a qual tão de leve pesava.

Era atração e virou afinidade, era afinidade e virou carinho, era carinho e virou medo, era medo e virou entrega, que foi culpa, raiva, desculpa e pesar.

Turbou, partiu, abateu
Queimou sem razão nem dó -
Ah, que dor!
Magoado e só,
- Só! - meu coração ardeu.

Era leve e era amor. Era amor e virou lembrança. Era um nós que agora já não é ninguém mais.

Seu destino foi curto e bom...
- Não o choreis

10 comentários:

  1. As músicas e poemas citados são:
    "Soneto de Separação", Vinícius de Moraes
    "Assinado Eu" - Tiê
    "Dois Barcos" - Los Hermanos
    "Inscrição", Manuel Bandeira
    "Epígrafe", Manuel Bandeira

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  2. Lindo, e em vários momentos a gente acha que você está falando, e que está falando de alguém conhecido. E também acha que pode ser ironia, tipo, falando de um passarinho que morreu, etc...
    Conforme o texto vai avançando a gente vai se envolvendo e entendendo o tom certo.
    Gostei!
    beijos!

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  3. Quando as pessoas dizem "Olhos são janelas da alma." temo as vezes que isso seja verdade. Não sou do tipo que esconde quem é, nem que cria personagens, mas quem sabe alguém, só de olhar nos olhos, possa ver o que não precisa ser visto? Adorei seu texto, me lembrou muito o eufemismo, de que as pessoas que amamos quando morrem, viram estrelas. Não que essa seja a intenção do texto! UAHAUAHU , Beijos :*

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  4. Eu jurava que isso era um filme! Não, não me pergunte de onde eu tirei isso,minha mente tbm me surpreende.
    Aí depois eu pensei que fosse a vida de um passarinho que não tinha aprendido a voar (pode rir). E aí,no finzinho...é sobre o amor?

    Eu adoro as suas combinações de palavras,Anna. Quando crescer quero ser igual a você! ^^

    ;)

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  5. Perfeito, Anna! ^^
    Aponta pra fé e rema! Adoro!
    Beijos!

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  6. Adoro seus contos, vc sempre escreve tão bem, Anna! Continue assim, linda, vc tem muito talento, viu?!?

    Beijos

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  7. Engraçado o teu personagem oculto. De inicio, parece fofoca, acontecimento na boca do povo que vai nascendo. Mas quando foi crescendo e se desenvolvendo, percebi um jovem no meio da historia. O que, inevitavelmente, me fez lembrar de Werther, de Goethe, livro que leio agora (mas já sei muito bem do que se trata).

    Tambem me lembrou Construção, de Chico Buarque, que você tanto gosta.

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  8. Mais uma vez estou aqui perdido, bobo... impressiona sempre ver como vc se renova, recria e inova a cada post!!!
    Adorei!!! Outro filme, outra trilha sonora! =]

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  9. Que lindo *-* Adoro o jeito que você escreve, é tão envolvente. Aguardo um novo post :D xx

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  10. Se entendi direito, é um amor que nasceu, mas que morreu?
    Bjitos!

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