quarta-feira, 31 de julho de 2013

Colchão velho para um corpo cansado

Reza a lenda que o colchão da minha cama é mais velho que eu, mas mesmo se ele fosse novo quando eu tivesse deitado nele pela primeira vez, poderíamos lhe atribuir com facilidade uns 15 anos - mais que isso, até, se estiver certa a suposição da minha mãe de que ele apareceu em nossas vidas quando eu abandonei o berço. Reza a lenda também que a gente deve trocar o colchão a cada cinco anos e se isso for verdade eu deveria doar meu corpo, principalmente minha coluna e meu sistema respiratório, para a ciência. O negócio é que vira e mexe minha mãe se lembra disso e começa a encher meu saco para trocar o meu colchão, e eu vira e mexe desconverso e a gente acaba trocando algum móvel da sala e fica tudo bem.

Hoje foi um daqueles dias em que minha mãe me enche o saco para trocar o colchão e disse que ficava abismada com a minha incapacidade de me desprender das coisas. Nem ouso dizer que isso é uma calúnia das grandes já que confessei no post passado que não jogo nem ingresso de cinema fora, quiçá um colchão que literalmente has my back desde o dia que tive controle o suficiente sobre mim mesma para não cair da cama, bater a cabeça e morrer. No entanto, essa minha característica de nada adianta na hora de explicar por que eu me recuso a trocar de colchão. Ora, não é como se eu fosse mantê-lo atrás da porta da despensa de casa como faço com aqueles três sacos de revistas e jornais que eu juro que vou levar para a reciclagem, mas sempre volto para olhar e folhear de novo e pensar que um dia eu vou precisar exatamente daquela página para um trabalho muito importante e não vou ter. Não é como se eu fosse dormir a nossa última noite juntos relembrando as sonecas da tarde que ele já me presenciou ou quantas histórias já não ouviu. 

O buraco é mais embaixo: o colchão é meu marido barrigudo e sua troca é a minha crise de meia idade.

Sempre que minha mãe elenca todos os motivos que justificariam a troca do colchão (são vários, de colocar qualquer pessoa mais normal de cabelos em pé), eu me sinto como uma mulher de cinquenta e poucos anos ouvindo da mãe gagá que o culpado pela minha vida sem graça é aquele traste bebedor de cerveja que está casado comigo. Eu escuto complacente, olhando de relance para o dito cujo que coça sua barriga grande e peluda e penso que mamãe tem razão, principalmente quando ele percebe meu olhar e pergunta que horas o jantar estará pronto. E eu, que com açúcar com afeto fiz seu doce predileto para ver se ele para em casa, assisto o marido pular a sobremesa para sair de casa sem hora para voltar e penso que, nossa, como mamãe está certa, semana que vem procuro um advogado e mudo de vida. E aí, naquela cama fria e vazia, eu penso em tudo que eu poderia ser sem ele, que voltaria a usar estampas, entraria num curso de italiano e em outro de dança de salão, e usaria minhas economias para fazer aquela viagem para o Peru que ele sempre disse ser besteira, que era melhor trocar a TV. Eu poderia tirar aquele vestido justo do armário, sentar num bar durante o happy hour e esperar que um homem grisalho, cheiroso, elegante e boa pinta me pague uma gin-tônica, porque é isso que as mulheres que aceitam bebidas de caras grisalhos e boa pinta pedem nos filmes. Nós viveríamos um tórrido romance, que poderia até render um livro e eu acabaria na Marília Gabriela contando como uma crise de meia idade revolucionou meu destino e me tirou da minha vida sem graça, me levando ao estrelato. 

Só que então o marido iria chegar fazendo barulho e fedendo a cigarro, mas comeria uma fatia do doce antes de ir para a cama. E quando ele dormisse, pela força do hábito me abraçaria forte e, no aconchego do seu peito e com a parte de baixo das minhas costas que sempre se arrepia de frio aquecida por aquela barriga enorme que durante o dia só me causa horror, eu concluiria que nenhum George Clooney de bar seria capaz de me oferecer aquilo. Ia concluir também que eu não flerto com ninguém desde os quinze anos e dificilmente saberia lidar com qualquer abordagem masculina, e por isso ia passar a noite sozinha bebendo na bancada do bar. E que nenhum homem me abraçaria como aquele que, mesmo com cheiro de pinga e de mulher da vida, me abraça, porque ele faz isso há mais de vinte cinco e anos e em meio a tantos erros, algo deve ter feito de certo para durar esse tempo todo. O abraço é a certeza que me faria apertar os olhos e esquecer dessas ideias. Mamãe está caduca.

O colchão é meu marido pançudo pois eu olho para ele já todo descanhotado e mole e penso que mereço mais que isso. Minha mãe, na verdade, insiste tanto pois se corrói em culpa já que trocou sua cama ano passado e hoje jura que dorme feito rainha enquanto me vê noite após noite encolher-me no meu colchãozinho velho que afunda quando a gente senta e nem é de um jeito bom. E hoje, depois que ela veio aqui me dizer que era ridículo e até perigoso eu estar há tanto tempo sem trocar meu colchão, eu pensei que era hora de mudar e concordei que poderíamos pensar em sair em busca de uma nova cama para mim. Minutos depois, como a mulher de cinquenta anos que sonha com a vida livre, me imaginei afundada numa enorme cama de molas, ao melhor estilo colchão de hotel. Imaginei uma cama firme como a da minha avó, que eu tanto invejo, e até me perguntei se minha mãe toparia me dar um colchão de água. As possibilidades são infinitas e a vida é curta demais para que a gente não passe uma tarde inteira deitando num sem número de colchões nas lojas até achar o ideal. 

Só que aí eu deitei na cama depois do banho, escondida no meu roupão amarelo que também é mais velho do que eu, e pensei que eu nunca acharia um colchão que se encaixa tão bem ao meu corpo como aquele. Pensei, com um frio na espinha, que poderia acabar comprando uma cama nova para, algumas semanas depois, descobrir que ela pega ali no meu nervo, como a cama do quarto de hóspedes que é uma maravilha nos seis primeiros dias, mas depois faz minha coluna queimar de dor. Pensei em todos colchões que já experimentei, dos de acampamento e até o do melhor hotel, e concluí, pesarosa, que nenhum deles me fez promessas pela vida inteira ou pelo menos me fez sentir que aquilo tinha chances de durar. E então temos o meu colchão, mole e maltrapilho, mas que conhece cada centímetro do meu corpo e sabe exatamente onde o calo aperta, e isso basta para que eu seja feliz - ou pelo menos o ature até que algum dito cujo me leve a abandonar minha vida de cama de solteira.

Eu tenho um problema de apego, mas eu tenho outro muito maior que é o medo das mudanças. Eu não mexo em time que está ganhando por outro que pode ganhar com mais vontade mas que pode também me decepcionar. Eu mudo meu cabelo a cada seis meses e não suporto rotina, mas só consigo fazer isso porque sei que posso contar com a vista da minha janela, os almoços de domingo e meu colchão velho no fim do dia. Cortar a franja pela milésima vez e odiar é uma coisa com a qual eu consigo lidar, mas isso não seria possível se numa sexta-feira eu acordasse com a ciática atacada por conta de um colchão novo. 

É demais para mim, e por isso eu vou dormir pensando que os planos do colchão novo podem ficar para o ano que vem (e eu realmente estou precisando de uma estante de livros), não sem antes beijar o retrato do marido barrigudo bebedor de cerveja e para ele abrir meus braços. Mamãe está caduca.  

Na saúde e na doença

3 comentários:

  1. Meu Deus, você é muito genial. O que foi esse texto gigantemente delicioso sobre um colchão? Olha, eu sou apegada, mas me apego mais a papéis dos quais posso precisas, e ingressos de cinema. Não ligo muito pra coisas tipo móveis. Mudei pra Curitiba sem dor na consciência, ganhei uma cama novinha e nunca mais pensei na antiga, que foi pra casa de vovó. Mas quando vou pra lá nas férias, faço questão do meu colchão! HAHAHA

    Te amo demais, e mal posso esperar pra ver 7 maravilhas dessas na nossa semana das crônicas!

    P.S.: "até achar o dito cujo que me livre da vida das camas de solteira" HAHAHA, apenas esperando! <3

    ResponderExcluir
  2. Você é muito gênia, Anna Vitória. Essa analogia do colchão ao marido pançudo foi SENSACIONAL. HAHAHA
    Também sou apegada ao meu colchão e minha história é mais ou menos parecida com a sua, com a única diferença que meu colchão é de molas e ele não afunda nem um tico. OU SEJA, ainda aguenta muito tempo HAHAHA.
    Todos aqui tiveram seus colchões trocados nos últimos quatro anos, mas é unânime a decisão de que não existe marido pançudo mais confortável que o meu.

    Beijo :*

    ResponderExcluir
  3. Nossa,não me senti lendo uma comparação com um colchão feita por uma garota de 19 anos,me senti lendo o relato de uma mulher na meia idade sobre o marido pançudo.Menina,como vc entende tanto da meia idade?Estou bem longe dela,mas seu texto foi muito real e(isso é ridículo de se admitir,mas)me deu medo de estar no lugar da mulher.Sei q o foco do texto era o colchão e o apego,mas precisei comentar isso pq a realidade da situação me deixou sem chão.Ótimo texto.

    ResponderExcluir