sábado, 6 de fevereiro de 2010

Miss Dollar.

Ultrapassando os limites da lógica, preciso dizer que quando estou lendo qualquer coisa do meu caro Joaquim Maria Machado de Assis é como se as palavras pulassem pra fora. Porque o que eu mais gosto em tudo que ele escreve, além da ironia fina sempre presente e o jeito diferente e interessante como ele coloca as palavras ao construir seus textos, são as palavras por si só. Ao lê-lo sempre tenho a sensação que as palavras são mais bonitas, com uma cadência diferenciada e toda dele, e até me arrisco dizer que se tivessem algum sabor, as palavras dele teriam gosto de chocolate. Meio amargo, claro, senão não estaríamos falando do Bruxo do Cosme Velho.

Nessas férias estive comigo pra lá e pra cá um livro de contos dele, a primeira parte de uma antologia. Acho a leitura de contos mais lenta, já que não é como um livro que você vai lendo continuamente. Eu pelo menos leio um conto por vez, espero, espaireço, só então passo para outro. É leitura de férias mesmo, dessas que a gente lê sem aquela afobação e pressa por terminar, um livro que fica junto para aquela esticada depois do almoço, e que faz companhia em alguma tarde tediosa.

O volume que peguei vinha com 21 contos, mas gostaria de destacar aqui o que mais me encantou: "Miss Dollar", que entitula esse post. Nele, Machado nos conta a história de um jovem médico solitário que vive somente com seus cachorros. Encontra um dia um cadelinha galga que no caso é a perdida Miss Dollar, que tem seu nome em todos os jornais anunciando o sumiço. Ao restitui-la, conhece sua dona, Margarida, uma encantadora viúva moça por quem Mendonça se apaixonada imediatamente.

É uma história adorável, e de uma delicadeza sem limites. A gente se encanta logo de cara com Mendonça, e seu amor inocente que aos poucos vai crescendo pela esquiva Margarida. O que mais me chamou atenção, e as palavras que saltaram do livro e dançaram ao pé de mim, foram aquelas que contavam o motivo pelo qual no começo Mendonça relutou ao admitir que seu coração já tinha sido ganho pela viuvinha:

"Mendonça nunca vira olhos verdes em toda a sua vida; disseram-lhe que existiam olhos verdes, ele sabia de cor uns versos célebres de Gonçalves Dias; mas até então os olhos verdes eram para ele a mesma cousa que a fênix dos antigos. Um dia, conversando com uns amigos a propósito disto, afirmava que se alguma vez encontrasse um par de olhos verdes fugiria deles com terror.

- Por quê? perguntou-lhe um dos circunstantes admirado.

- A cor verde é a cor do mar, respondeu Mendonça; evito as tempestades de um; evitarei as tempestades dos outros.

Eu deixo ao critério do leitor esta singularidade de Mendonça, que de mais a mais é preciosa, no sentido de Molière. " (...)
"Mendonça saiu impressionado pela interessante Margarida. Notava-lhe principalmente, além da beleza, que era de primeira água, certa severidade triste no olhar e nos modos. Se aquilo era caráter da moça, dava-se bem com a índole de médico; se era resultado de algum episódio da vida, era uma página do romance que devia ser decifrada por olhos hábeis. A falar verdade, o único defeito que Mendonça lhe achou foi a cor dos olhos, não porque a cor fosse feia, mas porque ele tinha prevenção contra os olhos verdes. A prevenção, cumpre dizê-lo, era mais literária que outra cousa; Mendonça apegava-se à frase que uma vez proferira, e foi acima citada, e a frase é que lhe produziu a prevenção. Não mo acusem de chofre; Mendonça era homem inteligente, instruído e dotado de bom senso; tinha, além disso, grande tendência para as afeições românticas; mas apesar disso lá tinha calcanhar o nosso Aquiles. Era homem como os outros, outros Aquiles andam por aí que são da cabeça aos pés um imenso calcanhar. O ponto vulnerável de Mendonça era esse; o amor de uma frase era capaz de violentar-lhe afetos; sacrificava uma situação a um período arredondado.

Referindo a um amigo o episódio da galga e a entrevista com Margarida, Mendonça disse que poderia vir a gostar dela se não tivesse olhos verdes. O amigo riu com certo ar de sarcasmo.

- Mas, doutor, disse-lhe ele, não compreendo essa prevenção; eu ouço até dizer que os olhos verdes são de ordinário núncios de boa alma. Além de que, a cor dos olhos não vale nada, a questão é a expressão deles. Podem ser azuis como o céu e pérfidos como o mar.

A observação deste amigo anônimo tinha a vantagem de ser tão poética como a de Mendonça. Por isso abalou profundamente o ânimo do médico. Não ficou este como o asno de Buridan entre a selha d’água e a quarta de cevada; o asno hesitaria, Mendonça não hesitou. Acudiu-lhe de pronto a lição do casuísta Sánchez, e das duas opiniões tomou a que lhe pareceu provável.

Algum leitor grave achará pueril esta circunstância dos olhos verdes e esta controvérsia sobre a qualidade provável deles. Provará com isso que tem pouca prática do mundo. Os almanaques pitorescos citam até à saciedade mil excentricidades e senões dos grandes varões que a humanidade admira, já por instruídos nas letras, já por valentes nas armas; e nem por isso deixamos de admirar esses mesmos varões. Não queira o leitor abrir uma exceção só para encaixar nela o nosso doutor. Aceitemo-lo com os seus ridículos; quem os não tem? O ridículo é uma espécie de lastro da alma quando ela entra no mar da vida; algumas fazem toda a navegação sem outra espécie de carregamento."

Dito isto, deixo a critério de vocês a conclusão se as palavras pulam mesmo e dançam um ballet dos mais bonitos na nossa frente. Se quiserem terminar o conto, podem lê-lo aqui. E se quiserem ler o livro, recomendo também a leitura do "Uma Visita de Alcibíades", "O Alienista", "A Chinela Turca" e "Folha Rota".

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