Nessas férias estive comigo pra lá e pra cá um livro de contos dele, a primeira parte de uma antologia. Acho a leitura de contos mais lenta, já que não é como um livro que você vai lendo continuamente. Eu pelo menos leio um conto por vez, espero, espaireço, só então passo para outro. É leitura de férias mesmo, dessas que a gente lê sem aquela afobação e pressa por terminar, um livro que fica junto para aquela esticada depois do almoço, e que faz companhia em alguma tarde tediosa.
O volume que peguei vinha com 21 contos, mas gostaria de destacar aqui o que mais me encantou: "Miss Dollar", que entitula esse post. Nele, Machado nos conta a história de um jovem médico solitário que vive somente com seus cachorros. Encontra um dia um cadelinha galga que no caso é a perdida Miss Dollar, que tem seu nome em todos os jornais anunciando o sumiço. Ao restitui-la, conhece sua dona, Margarida, uma encantadora viúva moça por quem Mendonça se apaixonada imediatamente.
É uma história adorável, e de uma delicadeza sem limites. A gente se encanta logo de cara com Mendonça, e seu amor inocente que aos poucos vai crescendo pela esquiva Margarida. O que mais me chamou atenção, e as palavras que saltaram do livro e dançaram ao pé de mim, foram aquelas que contavam o motivo pelo qual no começo Mendonça relutou ao admitir que seu coração já tinha sido ganho pela viuvinha:
"Mendonça nunca vira olhos verdes em toda a sua vida; disseram-lhe que existiam olhos verdes, ele sabia de cor uns versos célebres de Gonçalves Dias; mas até então os olhos verdes eram para ele a mesma cousa que a fênix dos antigos. Um dia, conversando com uns amigos a propósito disto, afirmava que se alguma vez encontrasse um par de olhos verdes fugiria deles com terror.
- Por quê? perguntou-lhe um dos circunstantes admirado.
- A cor verde é a cor do mar, respondeu Mendonça; evito as tempestades de um; evitarei as tempestades dos outros.
Eu deixo ao critério do leitor esta singularidade de Mendonça, que de mais a mais é preciosa, no sentido de Molière. " (...)"Mendonça saiu impressionado pela interessante Margarida. Notava-lhe principalmente, além da beleza, que era de primeira água, certa severidade triste no olhar e nos modos. Se aquilo era caráter da moça, dava-se bem com a índole de médico; se era resultado de algum episódio da vida, era uma página do romance que devia ser decifrada por olhos hábeis. A falar verdade, o único defeito que Mendonça lhe achou foi a cor dos olhos, não porque a cor fosse feia, mas porque ele tinha prevenção contra os olhos verdes. A prevenção, cumpre dizê-lo, era mais literária que outra cousa; Mendonça apegava-se à frase que uma vez proferira, e foi acima citada, e a frase é que lhe produziu a prevenção. Não mo acusem de chofre; Mendonça era homem inteligente, instruído e dotado de bom senso; tinha, além disso, grande tendência para as afeições românticas; mas apesar disso lá tinha calcanhar o nosso Aquiles. Era homem como os outros, outros Aquiles andam por aí que são da cabeça aos pés um imenso calcanhar. O ponto vulnerável de Mendonça era esse; o amor de uma frase era capaz de violentar-lhe afetos; sacrificava uma situação a um período arredondado.
Referindo a um amigo o episódio da galga e a entrevista com Margarida, Mendonça disse que poderia vir a gostar dela se não tivesse olhos verdes. O amigo riu com certo ar de sarcasmo.
- Mas, doutor, disse-lhe ele, não compreendo essa prevenção; eu ouço até dizer que os olhos verdes são de ordinário núncios de boa alma. Além de que, a cor dos olhos não vale nada, a questão é a expressão deles. Podem ser azuis como o céu e pérfidos como o mar.
A observação deste amigo anônimo tinha a vantagem de ser tão poética como a de Mendonça. Por isso abalou profundamente o ânimo do médico. Não ficou este como o asno de Buridan entre a selha d’água e a quarta de cevada; o asno hesitaria, Mendonça não hesitou. Acudiu-lhe de pronto a lição do casuísta Sánchez, e das duas opiniões tomou a que lhe pareceu provável.
Algum leitor grave achará pueril esta circunstância dos olhos verdes e esta controvérsia sobre a qualidade provável deles. Provará com isso que tem pouca prática do mundo. Os almanaques pitorescos citam até à saciedade mil excentricidades e senões dos grandes varões que a humanidade admira, já por instruídos nas letras, já por valentes nas armas; e nem por isso deixamos de admirar esses mesmos varões. Não queira o leitor abrir uma exceção só para encaixar nela o nosso doutor. Aceitemo-lo com os seus ridículos; quem os não tem? O ridículo é uma espécie de lastro da alma quando ela entra no mar da vida; algumas fazem toda a navegação sem outra espécie de carregamento."
Dito isto, deixo a critério de vocês a conclusão se as palavras pulam mesmo e dançam um ballet dos mais bonitos na nossa frente. Se quiserem terminar o conto, podem lê-lo aqui. E se quiserem ler o livro, recomendo também a leitura do "Uma Visita de Alcibíades", "O Alienista", "A Chinela Turca" e "Folha Rota".
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