sábado, 27 de novembro de 2010

Eu amo a amizade dos três

Acho que pela primeira vez na vida assisti a um Harry Potter no cinema sem meus amigos. Como estava em São Paulo perdi metade de toda a diversão que é um novo filme do Harry, ou seja, a ansiedade, as horas na fila, a bagunça, a loucura para conseguir os melhores lugares, os gritos no início da sessão ao ver o símbolo da Warner, as unhas cravadas no braço da pessoa ao lado em cenas tensas, as implicâncias com as chatices do Harry, os comentários... Vi o filme no sábado, num cinema estranho na avenida Paulista, numa sala cheia de adultos e só com meu primo, que não partilha de um quinto da minha emoção com aquele filme, que não esperou ansiosamente por aquilo igual eu esperava, que estava vendo um filme como qualquer outro. Se bem que se não fosse por ele eu não teria percebido que o duende Grampo é a cara do Bob Dylan.

Não achei lento como um monte de gente disse que era. Na verdade, quando acabou, bateu aquela sensação de "mas já?". Achei bem fiel ao livro, e foi tão do jeito que eu imaginei na minha cabeça que foi como aquela não fosse a primeira vez que eu via o filme. Chorei logo nas primeiras cenas, aquela que a Hermione lança um Obliviate nos pais. Fiquei fascinada com a animação feita para explicar a história das Relíquias da Morte, a sequência do Ministério da Magia é demais, o coração dói quando Harry vê o túmulo de seus pais em Godric's Hollow, meu asco por Bellatrix Lestrange foi tão, tão enorme que a única hora que me exaltei, matando meu primo de vergonha, foi quando falei um "vagabunda!" meio alto quando ela atira aquele punhal fatídico. Achei o início do filme corrido, a questão do Harry ter virado Indesejável nº 1 ficou confusa para quem não leu o livro e uma lacuna que não perdôo, mas também não saberia como introduzir no filme, é a repercussão que o "A Vida e as Mentiras de Alvo Dumbledore" tem na cabeça de Harry, o que acho que é uma coisa essencial do livro. Aliás, a história de Dumbledore foi mencionada assim por alto, né? Quis vomitar nos momentos Harry e Gina, aqueles dois não se ajudam. Fiquei em êxtase ao finalmente ver Gui Weasley, que é a coisa mais adorável do mundo, sempre tive uma quedinha por eles e morria de vontade de vê-lo em algum filme.

Só que o que me fez sair do cinema satisfeita foi a maneira como David Yates conseguiu captar a relação de Harry, Rony e Hermione. Os três não são mais crianças e os riscos que correm levam a coisas muito piores que a expulsão de Hogwarts. É muito bonita essa coisa de abandonar família, estudo e sonhos para ir atrás de uma missão com um amigo, quando não se sabe direito o que fazer, aliás, quando não se sabe absolutamente qual o próximo passo, bonito de dizer, mas na verdade é uma coisa penosa para todos eles, e assim como o livro mostra, nem tudo são flores. E ao mesmo tempo que a percepção que temos é a de como a amizade deles balança, ao final percebemos como aquele laço é forte. E lindo.

Boscov, minha filha, quando a Veja chega eu sempre corro para suas críticas. A gente discorda de vez em quando, mas normalmente estamos de acordo. Não entendi o que você escreveu sobre Harry Potter. Com todo respeito, senta lá. Isso não se faz. Leia os livros, assista de novo e muito foco nessa cena porque ela diz absolutamente tudo:


(Contém spoilers. A qualidade está péssima, é de um behind the scenes, foi o melhor que achei)

"What a beautiful place to be with friends!" - Dobby

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Eu vi o Paul e ele é lindo


Quem assistia The Oc certamente se lembra do episódio de Ação de Graças da 1ª temporada, em que a Summer chega de surpresa na casa dos Cohen e começa a agarrar o Seth sem dar muitas explicações, daquele jeito desesperado e bravo dela que não deixa o coitado respirar ou ao menos entender o que está se passando. De repente, Seth interrompe o beijo e começa a encará-la daquele jeito terno e desconcertado dele e diz, "This is happening!". A Summer manda ele calar a boca e volta a beijá-lo, mas se ela parasse pra pensar no significado daquela frase, beijaria com mais vontade. Porque ele teve que parar pra entender o que estava acontecendo, ele sonhou com aquilo durante tanto tempo que precisou de um momento para ter um clique e registrar na cabeça dele que aquilo era mesmo verdade. E foi no meio de "The Long And Winding Road" que eu parei e pensei comigo, "Putz, isso tá acontecendo!".

A Mel sempre brinca que eu deveria seguir carreira no jornalismo musical pra um dia trabalhar na Rolling Stone. E eu fico pensando comigo que deve ser ótimo ser fodona e ganhar ingressos pra shows incríveis e ainda por cima ser paga pra escrever sobre o que viu. Mas a verdade é que eu seria um fracasso nesse papel, pois numa situação dessas eu seria incapaz de olhar um show como foi o do Paul McCartney ontem e ter alguma visão crítica da situação e escrever algo racional. Não dá. Eu ia entregar um papel em branco pro meu chefe, ou então com vários pontos de exclamação e caracteres aleatórios em caixa alta, e talvez eu preencheria uma folha inteira com "na na na na na na na hey jude". "Desculpaí, mas é o que tem pra hoje".

Eu nunca ganharia respeito nesse meio se fosse escrever minha real impressão. Ninguém ia entender a dimensão da situação se eu escrevesse que fiquei tão fora de mim com tudo que não consegui chorar; eu, que fiquei arrepiada e com os olhos cheios d'água quando uns garotos que estavam perto de mim começaram a cantarolar "Getting Better" quando os telões se acenderam. Até que ponto vai a personalidade de uma pessoa que mesmo achando "Mrs. Vanderbilt" super brega não se calou na hora do "ho hey ho" e que mesmo odiando "Ob-La-Di Ob-La-Da" estava lá pulando e batendo palmas, cantando junto a música inteira que até então nem eu sabia que sabia de cor toda a letra? Eu te pergunto quem seria Anna Vitória na noite no meio daquele monte de pessoas cools que não se impressionam, eu que mesmo sabendo que os discursos em português que ele disse lá em cima eram os mesmos do show de Porto Alegre, e seriam os mesmos no dessa noite, achei tudo lindo, espontâneo e de coração. Mesmo sabendo que ele estava tocando pra sessenta mil pessoas, e eu era só mais uma delas, não podia deixar de sentir com a maior certeza do mundo que era pra mim.

Eu vi o Paul e ele é lindo. É lindo porque ele tem 68 anos e parece ter 68 anos quando dança de um jeitinho adorável, mais tiozinho impossível, como se fosse meu avô tentando se comportar como adolescente. É lindo ao dizer que a gente tem que ir embora, e deita o rosto nas mãos, como quem dorme, e imita um ronco. É lindo porque apoiava a mão no queixo e se recostava no piano, admirado com aquela multidão de gente de todas as idades possíveis, falando uma língua que lhe era estranha, cantando de trás pra frente aquelas músicas que eram dele e de seus amigos, mas eram também de cada um que estava lá. O Paul é lindo porque ele canta por três horas inteiras sem perder uma nota e sem beber um gole d'água. É lindo porque ele tem 68 anos e não parece tê-los nas costas quando tira "Helter Skelter" da alma, e toca de um jeito tão furioso que não parece que é a penúltima música do show, num momento que até eu estava pedindo arrego.

Num dia como ontem, só queria ser fodona pra poder escrever para algum veículo abrangente, que é pra muita gente ler e ter certeza disso, que aquele tombo que ele levou no final (e fez meu sangue parar por 3 segundos) não foi porque ele é velhinho ou porque ele tropeçou no fio ou em qualquer outra coisa. Paul caiu porque ficou difícil vencer o olho gordo de 60 mil pessoas que não queriam que ele fosse embora de jeito algum. Eu poderia passar o resto da minha vida naquele "na na na na na na na".

Obrigada, Sir. We love you, yeah, yeah, yeah!

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Pêssego e nectarina

No sábado passado, depois do  Enem, passei na padaria com papai para comprar coisas gostosas pro café da tarde. Enquanto esperávamos o peito de peru ser fatiado, ele me disse para pegar um suco, já que não estou tomando refrigerante, “eu até comprei essa semana, mas sem querer peguei o de nectarina e acho que você não vai gostar”. A caminho da geladeira, fiquei pensando com meus botões como meu pai conseguiu comprar um suco de nectarina, uma vez que um suco desses não é uma coisa muito comum. Aliás, desde quando existe suco de nectarina?
 
Já em casa, enquanto o ajudava a colocar as coisas na geladeira, dei de cara com uma simpática e já velha conhecida caixa vermelha de suco Del Valle. “Desde quando existe Del Valle de nectarina, meu Deus?”, eu pensava comigo mesma. Minha surpresa veio quando virei a caixinha e ali estava um redondo e suculento pêssego.
 

      

             Eu sei que disse que era uma caixinha, mas só achei imagem boa da lata, relevem.

 
“Uai, pai, cadê o suco de nectarina?”
“É esse aí que você tá segurando, oras.”
“Mas, pai, esse suco é de pêssego!”
“Lógico que não, olha aí escrito nectarOH WAIT” (ok, esse “oh wait” eu adicionei por conta própria)
“Viu, é néctar de pêssego, não nectarina… Como você pode confundir uma coisa dessas, pai?”
“Mas mas mas… Essa foto parece com uma nectarina!”
“Talvez pareça, mas não justifica! E você, quando tomou, não percebeu que era de pêssego?”
“Ah, sei lá, eu achei bom… AAAAAAH, Anna Vitória, não tenho tempo de ficar reparando nisso não, tudo a mesma coisa!”  - Papai com orgulho ferido pela confusão mode on.
 
Homens…

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Ode ao sono

Everybody seems to think I'm lazy
I don't mind, I think they're crazy
Running everywhere at such a speed
Till they find there's no need

Please don't spoil my day
I'm miles away
And after all
I'm only sleeping

Coisa que gosto nessa vida é dormir. Grande questão da humanidade pra mim não é que quem veio primeiro, a galinha ou o ovo, mas sim o que é melhor, comer ou dormir. Mas se for parar pra pensar, eu esqueço de comer com frequência, e Deus que me perdoe, mas as vezes eu tenho até preguiça de comer. Basta algum baque mais forte aqui dentro e o apetite é o primeiro a ir embora. Nunca, nunca me esqueci de ir dormir e muito menos fiquei com preguiça disso, aliás acho que a única coisa que a preguiça ajuda é a dormir. Se por um acaso algo ou alguém estiver me tirando o sono, corram para as montanhas que a coisa é séria. Me orgulho ao dizer que até hoje coração partido algum foi capaz de me fazer brigar com meu travesseiro, aquele lindo, minha estrela derradeira, amigo e companheiro no infinito de nós dois.

Apesar de não fazer milagres, existem poucas coisas nessa vida que uma noite de sono não é capaz de consertar, ou pelo menos amenizar. Quantas raivas não se amansaram depois de algumas horas de divino descanso e por quantas vezes bastou dormir para que os problemas parecessem menores? Se as pessoas dormissem mais, o mundo seria um lugar melhor. Por pior que tenha sido meu dia, a nota de Física, a briga com os pais e o xixi do cachorro no quarto, sempre terei duas grandes certezas na vida: a primeira é que Jesus me ama, a segunda é que no final de qualquer dia cruel existe uma noite de sono me esperando.

Se por um lado dormir parece uma enorme perda de tempo (e é), é o tipo de tempo jogado fora que, depois de acordar, você percebe que faria tudo de novo. Melhor que uma barra de chocolate inteira, porque dormir não engorda; melhor que o Álbum Branco, porque você não ouve Ob-La-Di Ob-La-Da enquanto dorme; melhor do que um par novo de sapatos, porque dormir é de graça; melhor até que marocar o Facebook da crush do momento, porque não existe a possibilidade de descobrir alguma coisa desagradável enquanto você dorme. Não existem limitações para o sono, toda hora é hora, todo lugar é lugar. Ainda bem que não consigo dormir em sala de aula, eu até tento, mas a paranoia não deixa. Em compensação, durmo no carro, no tapete da sala, já dormi sentada e tombei no sofá depois de um tempo, já apaguei durante toda a tarde com metade do corpo pra fora da cama, de tênis, com a cara enfiada no travesseiro. Dizem que os cães são um espelho do dono, e meu cachorro dorme 26 horas por dia. Nunca deixei de dormir por causa de filme de terror porque bebê de Rosemary nenhum consegue se sobrepor aos deleites do sono.

Das minhas paranoias delirantes hipocondríacas, as coisas que mais tenho medo de ter são, não necessariamente nessa ordem, tumor no cérebro (ou em qualquer lugar), diabetes, lúpus (mas nunca é lúpus) e insônia. Acordar pra mim é tão doloroso quanto ou até pior que nascer. Imagine você, um feto, na barriga quente da sua mãe sendo alimentado por um tubo no seu umbigo, chupando o dedo e dormindo e de repente te arrancam de lá e ainda batem na sua bunda pra você chorar. Caros obstetras, basta contar aos recém nascidos como vai ser a vidinha deles dali pra frente que eles chorarão que vai ser uma beleza. Acordar é tipo isso. É como se você estivesse mergulhando numa região abissal e é puxada para a superfície abruptamente, diante do sono a realidade vira um nitrogênio residual, acordar é uma embolia traumática do subconsciente.

Já vi coisas incríveis enquanto dormia. Já vi meu professor de Física mais querido subir no palco do Paul McCartney, catar um ukulele e cantar Dance Tonight; já cacei gremlins no shopping e topei com o Tarantino no elevador; divaguei sobre golden retrievers gigantes com pessoas aleatórias da escola; tomei sorvete e fui feliz com uma pessoa que provavelmente não deve se lembrar do meu nome. E mesmo se sonho que tirei 2 numa prova de História, que fui fazer vestibular e esqueci a caneta, que eu era uma florista molhada incapaz de pronunciar "the rain in Spain stay mainly in the plain", ou então o pior dos sonhos, que é aquele em que morre alguém querido, ainda assim existe a possibilidade de acordar e tudo não vai ter passado de um susto. Dormir é uma das coisas mais harmless de todo o mundo.

E talvez eu veja menos filmes porque durmo no meio deles com muito mais frequência do que gosto de admitir, e estude menos porque tem tardes em que dormir não é uma opção e sim uma necessidade, e talvez seja até melhor, vez ou outra, dormir mais tarde ou não dormir de jeito nenhum, mas isso é algo que discutirei depois, porque agora me bateu um sono daqueles.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Não consigo não falar do Enem

Fiz o Enem mais pra ver qual era e pra deixar meus pais felizes do que qualquer outra coisa, tanto que nem me inscrevi pro vestibular da UFU - a universidade adotou o Enem como primeira fase. Não tive problema algum durante a realização da prova, o erro dos gabaritos foi percebido logo no começo e em menos de meia hora já apareceu um fiscal dando as orientações corretas.

O que percebi foi um despreparo enorme por parte dos fiscais. Só avisaram para desligar o celular, nada de exigir que ele tivesse embaixo da carteira ou com a bateria pra fora; a maioria das meninas foi de bolsa e não houve pudor algum de futricar nelas a todo momento, na maioria das vezes pra tirar um pouco da cesta básica que carregavam ali, nunca vi precisar levar todo um estoque de comida pra se fazer prova; um enorme número de pessoas usando relógios, pulseiras, etc; não havia revista no banheiro, a fiscal esperava de fora com sua identidade na mão e se você estivesse com uma apostila embaixo da blusa, passaria despercebida; no segundo dia as provas foram entregues de forma que todos na mesma fileira horizontal recebessem o mesmo caderno, ou seja, as pessoas sentadas do meu lado tinham exatamente a mesma prova que eu.

Achei a prova, no geral, bem feita. Desconsiderando os erros de algumas questões, gostei bastante do que foi cobrado. Haviam questões bem, bem estúpidas, principalmente na prova de Matemática (!!) e de Ciências Humanas, conteúdo de nível Fundamental. Gostei especialmente da prova de Códigos e Linguagens, a maioria dos textos eram interessantes e atuais, as questões eram fáceis, mas creio que pra uma prova universal é insensato (apesar de essa coisa de nivelar um tanto quanto por baixo não ser coreta) puxar demais. O tema da redação era fácil, mas achei a proposta um tanto quanto vaga, principalmente por causa dos textos motivadores que abriam espaço para dezenas de propostas de texto diferentes.

Sobre a polêmica do possível cancelamento: não me afetou tanto e eu nem gastei neurônios me estressando tanto por isso, afinal eu só perdi um final de semana e minha coluna ainda está dolorida pelo tempo que passei sentada. Não vou morrer por causa disso. Só que aí me ponho no lugar de quem precisava da prova. De quem passou um ano ou mais estudando firme, seja por conta própria, no cursinho, com professores particulares... Por blogs e por Twitter acompanho a rotina de um monte de vestibulandos, e fico pensando o quão desastroso deve ser, depois de todo o esforço, pensar em ter que fazer a prova de novo ou sei lá qual decisão o MEC irá tomar. Não sei qual a melhor coisa a se fazer. Se outra prova é aplicada aos candidatos lesados, certamente haverão candidatos oportunistas prontos pra recorrerem na justiça alegando (e não estarão errados) que se a prova é universal, todos tem de fazer a mesma, logo uma ou outra prova não teria validade. Fazer tudo de novo? E quem bancaria isso? Cobrar inscrição de todo o pessoal novamente? Esquecer o Enem? Mas e as universidades que optaram por ele como único método de seleção, fazem o quê? Organizam um vestibular em 40 dias?

Fato é que a prova já perdeu sua credibilidade. Fico imaginando a quantidade de universidades que vão pular fora dessa canoa furada ano que vem. Errou uma vez, beleza, era a primeira vez e errar é humano. Errou a segunda? Pera, tem alguma coisa muito errada. É impossível aplicar uma prova, uma mesma prova, pro Brasil inteiro e esperar que isso fique a prova de erros. Uma professora minha disse muito bem, erros acontecem sempre e em todos os vestibulares, mas o universo de estudantes é pequeno se comparado com o do Brasil todo, e a repercusão é menor.

A ideia do Enem seria louvável se fosse bem realizada. É o tipo da coisa que pode dar muito certo ou muito errado. Já estamos vivendo as experiências dos erros. O Inep agora deve mais é que limpar a bagunça e agir com calma. Seriedade e compromisso, é tudo que o Enem mais precisa pra dar certo. Enquanto ele continuar a ser realizado da maneira atabalhoada e quase chutada que tem sido, mais erros virão. Quero ver quem terá paciência de pagar - literalmente - pra ver.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Do flerte

Sentiu chutar o seu um pé por debaixo da mesa. A pessoa que estava sentada de frente para ela não esboçou reação e parecia muito interessada na conversa que tinha com a pessoa ao seu lado. Fora uma mera distração.

Alguns poucos segundos depois, outro chute, dessa vez com mais força. Encarou-o de imediato. Ele ainda mantinha-se compenetrado na conversação que travava, apesar de que ela notara, poderia jurar que sim, um riso ali abafado na boca que ele mantinha fechada de forma quase rija, enquanto apoiava em uma das mãos o queixo.

Ela fixou o olhar nele, que agora já não escondia que a observava de soslaio, e outro chute veio sem fazer questão de se dissimular. Ela fez-se brava por brincadeira, e pobre do interlocutor de outrora, que dessa vez já falava para ninguém, ou então para um semblante quase vazio de vida que se esvaíra e fora dar toda a atenção do mundo à garota que sentava-se na cadeira em frente.Ele pediu licença ao seu companheiro de prosa de forma educada, e arrastou sua cadeira para o outro lado da mesa enfiando-a desajeitadamente entre ela e a pessoa que estava ao seu lado no minuto anterior, sendo muito polido e pedindo várias desculpas ao pessoal enfadado pelo incômodo que causava.

Cumprimentou-a com dois beijos no rosto, estralados, mas de um jeito que não merece reprovação. Era uma das coisas que ela mais gostava nele, o beijo de oi; não era como a maioria das pessoas que apenas encostam sua face à da outra, e se o lábio roça é coisa leve. Ele não. Beijava-lhe as duas faces de forma quase ávida e não é como se o fizesse com todas as outras colegas de trabalho: seus beijos de bom dia e já vou indo eram reservados para poucas felizardas.

Conversaram amenidades, caçoaram da gravata do chefe que se sujara de molho, comentaram sobre a novela - que ela estava perdendo e ele gostava de assistir com a mãe -, a comida do lugar, ele lhe falara sobre o vinho - mas sem fazer-se muito sabido, como outros homens que ela antes conhecera que tinham mania de cheirar rolhas da maneira mais pretensiosa do mundo.

Vez ou outra ele lhe fazia alguma troça, seja chutar-lhe de leve a canela por debaixo da mesa, ameaçar cobri-la de cócegas, roubar qualquer coisa de seu prato. Ela sorria, lhe empurrava de leve, “ai, para” era o que dizia, querendo complementar com um “estão todos olhando”, porque parar, bem, não era o que ela desejava que ele fizesse. Aliás, se pudesse lhe pedir qualquer coisa seria para que não parasse nunca, e talvez ele se agradasse do intento.

Ele aproveitava a deixa para fazer-se mais presente, como um pavão ao inflar-se vaidoso, mas sem o sê-lo de fato. Gostava de quando ela tentava fingir-se de brava mas logo desatava a rir com gosto e dizia em meio às gargalhadas que iria mudar de lugar, que ele não estava deixando-a jantar. Ele lhe segurava os pulsos, que tentavam lhe desferir pequenos socos no braço, lhe olhava de um jeito sério e dizia que iria embora, se era assim que ela queria. Quando ela respondeu que era brincadeira, ele logo disse que tudo bem, mas que precisava terminar de jantar, e ela também e que não poderia ir embora muito tarde.

Retomara seu posto em frente a ela, fez algum questionamento ao seu antigo companheiro de papo, e meteu-se na conversa novamente. E ocasionalmente chutava de leve as canelas da moça a sua frente, que só o olhava e dizia, por baixo de um sorriso, só mexendo os lábios, “ai, para”.

Achava-a bonita, engraçadinha e só. Gostava de vê-la chegando pela manhã, o barulho ritmado dos seus passos que a conduziam por todo o ambiente até a máquina de café e que, na volta, fazia-a retornar cheia dos sorrisos e dos bons dias para todos. Caso cruzassem-se, depositava-lhe na face dois beijos, acompanhados de um nariz que queria muito sentir novamente seu cheiro bom; caso não, apenas fazia-a parar em frente a sua mesa e lhe beijava a mão cordialmente, dando especial atenção à cor de suas unhas, que eram sempre divertidas, contrastando com toda a formalidade que a empresa exigia.

Já ela gostava de lhe ver fora de lá, de um jeito mais informal. Porque ele era todo assim, e aquele engravatamento apesar de lhe conferir um enorme charme punha-lhe de um jeito que pouco combinava com sua personalidade. Achava-o lindo do jeito que estava naquela noite, ainda que com as mesmas roupas do escritório mas já sem terno, as mangas um tanto dobradas, a gravata frouxa revelando algumas pintinhas no pescoço que uma noite ela já se flagrou beijando em sonho. Sentia um rubor nas faces só de se lembrar.

Ele não a levaria em casa, e nem ela insinuaria que precisava de carona ou queria alguém com quem rachasse o táxi. Caso o pessoal resolvesse esticar a noite em qualquer outro lugar, depois que o chefe fosse embora, iriam de bom grado, ela negando a princípio e ele fazendo mil promessas que lhe deixaria em casa no mais tardar a meia noite, para que ela pudesse acordar bem no dia seguinte, como se fosse sua Cinderela.

A sinuca seria o lugar escolhido, aquela diferente que todo mundo gostava, que mais se parecia um pub londrinho, com karaokê, jukebox e cerveja barata. Ela iria ao banheiro com as outras colegas, passar batom e ser interrogada sobre o que andava acontecendo entre os dois, “todo mundo está percebendo”, diriam cheias de risinhos suas companheiras enquanto retocavam a maquiagem. Ela negaria de pés juntos, diria que são amigos, colegas, que só apreciam a conversa um do outro. Ela não acreditaria no que dizia, muito menos as amigas.

Ele, enquanto isso, já teria tirado a camisa para fora da calça, passado giz na ponta do taco e observaria atento o melhor ângulo para encaçapar o maior número possível de bolas coloridas. Os colegas, da maneira despachada que só os homens tem quando estão entre os seus, discorreriam sobre as moçoilas que se escondiam no banheiro, e talvez algum dissesse o nome dela de um jeito a insinuar algo para ele, e aquele já mais bêbado soltaria que ela era uma gostosa e ele riria, dizendo nada, mas concordando ao se lembrar da meia que ela usava, e que um dia ele observava com toda a perícia do mundo num cruzar e descruzar de pernas na sala de reuniões, uma meia engraçada que parecia meia-calça mas terminava um pouco acima dos joelhos. Ele nunca tirara essa breve visão da cabeça.

Eles poderiam até cantar juntos, ela já livre dos sapatos de salto, alguma música do Roberto Carlos na época da Jovem Guarda, sem fazer questão de alcançar as notas corretas, e dariam as mãos e as estenderiam ao alto no refrão, em redenção àquela sexta-feira a noite inusitada. E talvez ele colocasse para tocar na jukebox alguma música que ela gostava muito e algum dia lhe contara por acaso. Ela poderia passar a noite imaginando se teria sido para ela, ou só mera coincidência.

Até que um dos dois caísse na realidade novamente, e enxergasse além do ambiente turvo do pequeno lugar já inundado de fumaça de cigarro com muitos colegas de trabalho alterados cantando Celine Dion, e fosse embora sorrateiramente. Caso se deixassem ficar, acabariam indo embora juntos, se beijariam na porta da casa de algum e talvez tivessem um caso de uma semana ou mais, que terminaria em constrangimento, com ela aborrecida colocando para tocar na jukebox do happy hour da semana seguinte “You’re So Vain” fazendo toda a questão do mundo que ele ouvisse e entendesse que era tudo para ele.

Não havia razão para tudo isso. Coisa boa é flertar. Os dois não confessavam um para o outro, mas tinham um enorme fraco por canções de Roberto Carlos.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

De geração pra geração


Estava eu deitada na cama, nas últimas páginas do livro, e Mariana, minha prima de sete anos, no colchão aos meus pés, com a cara metida num grosso e antigo volume de Reinações de Narizinho. Ela percebeu que eu a observava e sentou-se do meu lado na cama, com a cabeça encostada no meu ombro, acompanhando minha leitura.

"Você gosta desse livro?" "Sim" "Tem vários filmes dele, né?" "Aham" "Eu nunca vi nenhum, nem li nenhum dos livros" "Ah, mas você vai ler sim, quando chegar a hora." "E quando é a hora?" "Não sei, eu li o primeiro quando tinha uns oito anos mais ou menos" "Oito? Então eu quase posso ler. Eu tenho sete!" "Mas é claro que você vai ler, eu vou te dar de presente, todos eles, um por ano, que tal?" "Porque só um por ano?" "Ah, Mariana, porque esperar é mais legal, e também pra fazer mais sentido." "Mas não é ruim ter que esperar?" "Mas a expectativa faz parte do negócio, meu bem, dá uma ansiedade gostosa e quando finalmente chega a hora de ler, você termina o livro em menos de uma semana." "Menos de uma semana? Um livrão desse tamanhão?" "Aham, pra você ver como é legal!"


Foi aí que eu tive oito anos de novo, e estava numa cama de casal dum quarto de hotel de Porto Seguro, dividindo O Prisioneiro de Azkaban com meu primo. Me lembrei dos pesadelos recorrentes que eu tinha com Sirius Black, como se o próprio estivesse a solta e querendo meu sangue; depois, o alívio, o carinho enorme que sentia pelo bruxo injustiçado, como se ele fosse ambém meu próprio padrinho recém-descoberto. Depois lá estava eu, juntando minha mesadinha pra entrar na livraria e sair de lá com o livro mais grosso que eu já lera, a capa verde com um garoto de óculos redondos e cicatriz em forma de raio na testa, segurando um ovo de ouro. "Você vai ler esse livro desse tamanho?" - me perguntavam, incrédulos. E então naquela viagem de carro, no meio da noite, eu lendo com a luz precária do celular do meu pai, sentindo um medo tão forte daquela criatura que então voltava a ganhar o corpo, "Osso do pai, dado sem saber, renove seu filho. Carne do servo, dada de bom grado, reviva seu mestre. Sangue do inimigo, tirado à força, reviva seu oponente.", aquela criatura branca, de cara ofídica e olhos vermelhos, "então é assim que ele é", eu pensava comigo cheia de medo, evitando olhar pela janela com medo de ver aqueles olhos terríveis a espreita.

Nos seguintes volumes e anos que se seguiam, uma genuína birra surgida pelo personagem principal e a total indisposição que sentia do quinto livro, ainda mais depois da grossas lágrimas derramadas nas páginas, deixando-as enrugadas ao ver morrer meu personagem favorito. O envolvimento total no penúltimo da série, mais lágrimas que escorreram diante da morte daquele que sempre trouxe segurança mesmo quando tudo ia mal. E no volume final, o corpo tenso na cadeira diante de cada fuga, cada briga, cada mistério sendo resolvido, o estômago que se revirava com medo de que mais personagens - que agora já eram meus amigos - queridos fossem embora, e todas as lembranças de como as coisas eram felizes no começo. Harry, que ainda era fofo e legal, Rony com medo de aranhas e quebrando a varinha, a frase clássica de Hermione Granger, ainda dentuça e descabelada, "É Leviosa e não Leviosáá"... Todas as madrugadas que passei lendo, todas as horas que gastei nas filas de estreia, as fanfictions lidas para apaziguar a ansiedade até que o próximo volume fosse lançado, todas as intermináveis conversas, as aulas que dispensei sem dó para ler um pouquinho mais...

E aí as pessoas me veem de novo com o calhamaço surrado laranja nos mãos e dizem, "Mas tá lendo Harry Potter de novo?" e eu não tenho a mínima vergonha de dizer que, pomba, é claro que eu estou! Se hoje eu aprendi que algumas folhas e histórias fantásticas podem nos levar pra outras dimensões nunca antes imaginadas, foi porque naquela viagem de férias pra Porto Seguro eu larguei o que estava fazendo para entrar em Hogwarts, ganhar três novos melhores amigos e também um bocado de inimigos. Já lia antes disso, mas se aprendi a me desligar de tudo ao meu redor e me entregar completamente a uma única história, foi porque dei uma chance ao Menino-Que-Sobreviveu de me contar ao que veio. Se hoje, junto dos grossos e coloridos livros, existem na minha estante Jane Austen, Dostoiévski e Machado de Assis, J.K. Rowling me ensinou que quando se tem uma boa história e imaginação, nunca se está sozinho ou entediado.

Mariana já tinha dormido quando li a última página, e depois o epílogo. E agora, José? A luta terminou, as fagulhas verde e vermelha das varinhas se apagaram, a cicatriz não doía há dezenove anos e tudo estava bem. Não era a primeira vez que lia aquelas páginas, nem a primeira que constatava a presença do fim, mas nunca é fácil, nunca é normal e o vazio nunca deixa de se manifestar. E agora, Joanne Kathleen, o que fazer?

Aniversário de Mariana é em dezembro e estou aqui no Submarino, vendo o exemplar d'A Pedra Filosofal olhar tentadoramente para mim. Dizem que Harry Potter foi o marco de uma nova geração de leitores, mas não serei egoísta o suficiente de querer esse mundo mágico só pra mim.