Alguns poucos segundos depois, outro chute, dessa vez com mais força. Encarou-o de imediato. Ele ainda mantinha-se compenetrado na conversação que travava, apesar de que ela notara, poderia jurar que sim, um riso ali abafado na boca que ele mantinha fechada de forma quase rija, enquanto apoiava em uma das mãos o queixo.
Ela fixou o olhar nele, que agora já não escondia que a observava de soslaio, e outro chute veio sem fazer questão de se dissimular. Ela fez-se brava por brincadeira, e pobre do interlocutor de outrora, que dessa vez já falava para ninguém, ou então para um semblante quase vazio de vida que se esvaíra e fora dar toda a atenção do mundo à garota que sentava-se na cadeira em frente.Ele pediu licença ao seu companheiro de prosa de forma educada, e arrastou sua cadeira para o outro lado da mesa enfiando-a desajeitadamente entre ela e a pessoa que estava ao seu lado no minuto anterior, sendo muito polido e pedindo várias desculpas ao pessoal enfadado pelo incômodo que causava.
Cumprimentou-a com dois beijos no rosto, estralados, mas de um jeito que não merece reprovação. Era uma das coisas que ela mais gostava nele, o beijo de oi; não era como a maioria das pessoas que apenas encostam sua face à da outra, e se o lábio roça é coisa leve. Ele não. Beijava-lhe as duas faces de forma quase ávida e não é como se o fizesse com todas as outras colegas de trabalho: seus beijos de bom dia e já vou indo eram reservados para poucas felizardas.
Conversaram amenidades, caçoaram da gravata do chefe que se sujara de molho, comentaram sobre a novela - que ela estava perdendo e ele gostava de assistir com a mãe -, a comida do lugar, ele lhe falara sobre o vinho - mas sem fazer-se muito sabido, como outros homens que ela antes conhecera que tinham mania de cheirar rolhas da maneira mais pretensiosa do mundo.
Vez ou outra ele lhe fazia alguma troça, seja chutar-lhe de leve a canela por debaixo da mesa, ameaçar cobri-la de cócegas, roubar qualquer coisa de seu prato. Ela sorria, lhe empurrava de leve, “ai, para” era o que dizia, querendo complementar com um “estão todos olhando”, porque parar, bem, não era o que ela desejava que ele fizesse. Aliás, se pudesse lhe pedir qualquer coisa seria para que não parasse nunca, e talvez ele se agradasse do intento.
Ele aproveitava a deixa para fazer-se mais presente, como um pavão ao inflar-se vaidoso, mas sem o sê-lo de fato. Gostava de quando ela tentava fingir-se de brava mas logo desatava a rir com gosto e dizia em meio às gargalhadas que iria mudar de lugar, que ele não estava deixando-a jantar. Ele lhe segurava os pulsos, que tentavam lhe desferir pequenos socos no braço, lhe olhava de um jeito sério e dizia que iria embora, se era assim que ela queria. Quando ela respondeu que era brincadeira, ele logo disse que tudo bem, mas que precisava terminar de jantar, e ela também e que não poderia ir embora muito tarde.
Retomara seu posto em frente a ela, fez algum questionamento ao seu antigo companheiro de papo, e meteu-se na conversa novamente. E ocasionalmente chutava de leve as canelas da moça a sua frente, que só o olhava e dizia, por baixo de um sorriso, só mexendo os lábios, “ai, para”.
Achava-a bonita, engraçadinha e só. Gostava de vê-la chegando pela manhã, o barulho ritmado dos seus passos que a conduziam por todo o ambiente até a máquina de café e que, na volta, fazia-a retornar cheia dos sorrisos e dos bons dias para todos. Caso cruzassem-se, depositava-lhe na face dois beijos, acompanhados de um nariz que queria muito sentir novamente seu cheiro bom; caso não, apenas fazia-a parar em frente a sua mesa e lhe beijava a mão cordialmente, dando especial atenção à cor de suas unhas, que eram sempre divertidas, contrastando com toda a formalidade que a empresa exigia.
Já ela gostava de lhe ver fora de lá, de um jeito mais informal. Porque ele era todo assim, e aquele engravatamento apesar de lhe conferir um enorme charme punha-lhe de um jeito que pouco combinava com sua personalidade. Achava-o lindo do jeito que estava naquela noite, ainda que com as mesmas roupas do escritório mas já sem terno, as mangas um tanto dobradas, a gravata frouxa revelando algumas pintinhas no pescoço que uma noite ela já se flagrou beijando em sonho. Sentia um rubor nas faces só de se lembrar.
Ele não a levaria em casa, e nem ela insinuaria que precisava de carona ou queria alguém com quem rachasse o táxi. Caso o pessoal resolvesse esticar a noite em qualquer outro lugar, depois que o chefe fosse embora, iriam de bom grado, ela negando a princípio e ele fazendo mil promessas que lhe deixaria em casa no mais tardar a meia noite, para que ela pudesse acordar bem no dia seguinte, como se fosse sua Cinderela.
A sinuca seria o lugar escolhido, aquela diferente que todo mundo gostava, que mais se parecia um pub londrinho, com karaokê, jukebox e cerveja barata. Ela iria ao banheiro com as outras colegas, passar batom e ser interrogada sobre o que andava acontecendo entre os dois, “todo mundo está percebendo”, diriam cheias de risinhos suas companheiras enquanto retocavam a maquiagem. Ela negaria de pés juntos, diria que são amigos, colegas, que só apreciam a conversa um do outro. Ela não acreditaria no que dizia, muito menos as amigas.
Ele, enquanto isso, já teria tirado a camisa para fora da calça, passado giz na ponta do taco e observaria atento o melhor ângulo para encaçapar o maior número possível de bolas coloridas. Os colegas, da maneira despachada que só os homens tem quando estão entre os seus, discorreriam sobre as moçoilas que se escondiam no banheiro, e talvez algum dissesse o nome dela de um jeito a insinuar algo para ele, e aquele já mais bêbado soltaria que ela era uma gostosa e ele riria, dizendo nada, mas concordando ao se lembrar da meia que ela usava, e que um dia ele observava com toda a perícia do mundo num cruzar e descruzar de pernas na sala de reuniões, uma meia engraçada que parecia meia-calça mas terminava um pouco acima dos joelhos. Ele nunca tirara essa breve visão da cabeça.
Eles poderiam até cantar juntos, ela já livre dos sapatos de salto, alguma música do Roberto Carlos na época da Jovem Guarda, sem fazer questão de alcançar as notas corretas, e dariam as mãos e as estenderiam ao alto no refrão, em redenção àquela sexta-feira a noite inusitada. E talvez ele colocasse para tocar na jukebox alguma música que ela gostava muito e algum dia lhe contara por acaso. Ela poderia passar a noite imaginando se teria sido para ela, ou só mera coincidência.
Até que um dos dois caísse na realidade novamente, e enxergasse além do ambiente turvo do pequeno lugar já inundado de fumaça de cigarro com muitos colegas de trabalho alterados cantando Celine Dion, e fosse embora sorrateiramente. Caso se deixassem ficar, acabariam indo embora juntos, se beijariam na porta da casa de algum e talvez tivessem um caso de uma semana ou mais, que terminaria em constrangimento, com ela aborrecida colocando para tocar na jukebox do happy hour da semana seguinte “You’re So Vain” fazendo toda a questão do mundo que ele ouvisse e entendesse que era tudo para ele.
Não havia razão para tudo isso. Coisa boa é flertar. Os dois não confessavam um para o outro, mas tinham um enorme fraco por canções de Roberto Carlos.
Adorei... aliás, tenho um grande fraco pelos seus contos. (:
ResponderExcluirNão é nada difícil imaginar essa situação acontecendo na nossa frente.
Bjos
Já disse que acho seus contos uma delícia? Gosto muito mesmo deles! Este entrou para o hall dos favoritos.
ResponderExcluirAi que delícia de conto, Anna.
ResponderExcluirMe lembrou muito 500 dias com ela.
Sem mais, :b
beijos
ps: bom ENEM.
Hey ^^
ResponderExcluirAMEI o conto e como a Gabriela citou me veio 500 dias também.
Xoxo
:: Loma
Ai, flertar... aquela inocência, né? Se como nada de ruim ou desagradável pudesse acontecer. Uma inocência de "felizes para sempre". Eu nem queria um casamento que fosse cheio de romances, blá blá blá, bastava ser um eterno flerte :)
ResponderExcluirEu adorei, mas nem vou falar muito pois me encontro na tpm e meio pra baixo hj.. nao quero molhar seus comentarios :~
ResponderExcluirE as pessoas disseram do filme 500 dias... quero ver esse filme dps. :~
Beijos Ana! e ta chegando o grande dia neh? (do paul.. ;D)
Ah, te indiquei um desafio no blog.
ResponderExcluirSe quiser fazer, pegue la dps.
To com a cabeca pessima hj! aff
gostei desse final quase niilista, tirando o peso de tudo. é como as coisas são e funcionam. e seria melhor se as pessoas não tivessem mania de complicar tudo.
ResponderExcluirAdorei o conto, muito gostoso de ler!
ResponderExcluirAh, adorei seu conto :D
ResponderExcluirAh, que lindo conto! Sabe, por vezes acho que o flerte é de fato mais interessante do que o relacionamento em si. Todo aquele jogo de conquista, de se sentir importante e de fazer o outro sentir-se bem, são tão ou mais legais do que os relacionamentos. Exatamente como disse alguém aí em cima, "seria melhor se as pessoas não tivessem mania de complicar tudo". Beijo Anna!
ResponderExcluirVocê é uma excelente escritora!
ResponderExcluirAdoro contos!
muito bom ;)
;*
Anna, perfeito! Muito bom seu conto. Esse é o meu favorito!
ResponderExcluirOs flertes são como a definição que Milan Kundera deu às metáforas: "não se brinca com metáforas - o amor pode nascer de uma delas".
ResponderExcluirBeijinhos!
me lembrou sargento de milícias na verdade, nascido de um beliscão e uma pisadela. ninguém mais lembrou?
ResponderExcluiruma beija
Chutar a canela das moças é algo divertido, desde que não saia sangue.
ResponderExcluirBjs
Oi Anna, tudo bem?
ResponderExcluirAmei esse conto, e amei todos os que li, você escreve de um jeito tão fofo *-*
O Flerte é maravilhoso... rs O formigamento das mãos, rubor da face, as borboletas no estômago, tudo isso deveria continuar quando passamos do flerte para o caso e depois para o namoro e assim sucessivamente...
E parafraseando alguém ai em cima:
"seria melhor se as pessoas não tivessem mania de complicar tudo."
Amei, mesmo!
Um beijo
"Ah, Anna, que lindo!!! Você é phoda, mesmo!!! Não dá ponto sem nó!!! Seus textos fazem bem pra saúde! Adorei! A gente sempre faz isso: fica considerando todas as possibilidades e poréns e acaba por ter medo de se envolver por causa deles. a emoção fica nas entrelinhas, fica escondida nas letras de música, naquelas que a gente diz que poderiam ter sido escritas pela gente! Uma obra prima: parabéns!
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