Eu cresci ouvindo que tinha que ser inteligente. Não era algo opressivo (nem sempre), mas estava ali. Meus pais me criaram pra ser inteligente. Não um gênio ou um prodígio, mas simplesmente boa naquilo que eu fizesse - fosse caligrafia, o A B C, tabela de multiplicação, história, português, vestibular e qualquer profissão que eu escolhesse. A escolha por uma faculdade de jornalismo não emocionou muito meus pais que sonhavam com uma médica ou uma diplomata, mas eles não deixaram de me apoiar por isso, só pediram que então eu fosse a melhor jornalista que eu pudesse ser.
No começo era fácil, e até a oitava série consegui tirar de letra isso de ser boa nas coisas. Como a Analu escreveu no blog dela esses dias, eu fui uma criança e tanto, e logo aprendi que "se eu tinha um charme nessa vida, era esse. Eu era inteligente. Eu conseguia fazer as coisas. Eu era aprovada em tudo o que eu me predispunha a fazer." Até que (sempre tem um até que) a coisa começou a desandar. Fui pra uma outra escola no ensino médio, uma escola grande, e lembro até hoje da primeira devolutiva das provas que fizemos. Não lembro detalhes, mas foi mais ou menos assim: se antes minha menor nota era 8, dessa vez a maior tinha sido um 7,5. Tirei o meu primeiro vermelho. Chorei de soluçar na frente de todo mundo e a professora parou a aula pra ir conversar comigo, porque humilhação pouca é bobagem. Eu tinha falhado. Como ia explicar aquilo pros meus pais?
À noite, meu pai me levou pra comer um sanduíche e conversar. Ele disse que aquilo não era o fim do mundo, mas não passou a mão na minha cabeça: disse que era normal estranhar no começo e que agora em diante eu tinha que me esforçar um pouco mais e logo pegaria o ritmo. O que eu senti foi como se o meu melhor, que antes tinha garantido que eu fosse, se não a primeira, pelo menos a segunda ou a terceira da turma, agora custava a me colocar na média.
É verdade que eventualmente me acostumei ao ritmo da escola e minhas notas melhoraram bastante, mas nunca mais fui a melhor. Me garantia nas humanas, passava sempre raspando em física e matemática, estudava química e biologia feito uma maluca. Quando o boletim chegava no fim do bimestre, sempre acontecia um troço meio chato que era eu ter que explicar por que continuava tirando 6 em algumas matérias sendo que minha única obrigação na vida era estudar. Se era difícil pros meus pais entenderem que tinham coisas que a menininha inteligente deles não dava conta, que tinha um limite ali, se eles lutavam pra aceitar essa quebra de expectativa, imagine como era pra mim. No começo eu sofria, chorava, adoecia, e ia atrás de plantões e professores particulares, mas depois aprendi a não ligar tanto assim. Fui criando uma rejeição a esse ideal de perfeição, ao estereótipo da garota inteligente melhor em tudo, coloquei a culpa no sistema - eu era realmente muito boa em culpar o sistema.
Escrevi um comentário num post da Sharon sobre cinema dizendo que eu adorava cinema e música quando era mais nova, e sonhava em ser crítica quando crescesse. Só que em determinado momento percebi que eu sabia demais e me divertia menos com as coisas, então comecei a investir meu tempo consumindo aquilo que me divertia e com o que eu me identificava. Não que eu não me divertisse com o cânone, muito menos que as coisas divertidas sejam ruins, mas cês entendem a diferença simbólica de Jurassic Park e um filme do Godard, né?
Era uma vida confortável essa de abraçar as imperfeições e a diversão depois de tantos anos me preocupando em ser e melhor em tudo - e depois sofrendo por nem sempre (quase nunca) chegar lá. Era um alívio. Eu estava muito feliz com essa identidade que construíra pra mim mesma, via isso como um ato de amor próprio e, ao mesmo tempo, rebeldia. De garota chata fã de Radiohead que passava dois dias chorando por conta de uma nota 5, eu agora lia livros adolescentes sem pedir desculpas, e dava risada das minhas notas ruins (gargalhei quando tirei meu primeiro zero? gargalhei) dançando Shakira. A vida era boa.
Até o dia que eu fiz o teste do chapéu seletor no Pottermore e descobri que era uma corvinal.
Querido leitor, se você não se importa com Harry Potter e acha isso demodê por favor dê meia volta e saia já daqui , fique sabendo que uma coisa importante sobre mim é o fato de que eu levo cultura pop a sério e acho que esse tipo de coisa diz muito sobre quem somos. Antes de fazer o teste, eu queria muito ser da Lufa-Lufa. Minha nova postura diante do mundo era totalmente lufana, eu queria fazer parte dessa galera gente boa, parceira, de coração bom e que mora perto da cozinha.
Corvinais são famosos por sua inteligência, mas dizem as más línguas que são arrogantes. Eles querem ser os melhores em tudo e tiram seu valor disso, representando basicamente tudo que eu lutava com tanta força pra tirar de mim. Normalmente acontece o movimento contrário: as pessoas querem ser corvinais (ou grifinórios), se revoltam quando se descobrem lufanos, e depois abraçam a personalidade despretensiosa e gentil dos texugos. Tudo que eu queria era ser relax e gente fina, mas sou essa pessoa pilhada e megalomaníaca, que quer tudo certinho e pira num livrão. Eu não queria ser essa pessoa, me devolve minha sala comunal perto da cozinha porque tenho certeza que lá as pessoas estão ouvindo Taylor Swift fazendo uma ciranda e aqui nessa torre estão me obrigando a fazer um teste de aptidão, SOCORRO!!11
Minha revolta durou o tempo necessário para ler a carta de boas vindas, porque de repente eu estava chorando e me sentindo muito abraçada (eu me importo com essas coisas mesmo, e você que é feio?). Com aquela mensagem, descobri que corvinais tem essa coisa de ser espertos, mas o mais importante é que eles são únicos e até meio excêntricos, e celebram a individualidade de forma criativa ou investindo em novas descobertas. Corvinal é a casa de pensar fora da caixa, inventar moda e questionar o status quo. De gente que às vezes pensa demais, mas que não tem nada de errado com isso. Ler aquela carta naquele dia me mostrou que aquilo que fazia com que eu me sentisse chata e diferente poderia, sim, ser o meu charme.
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spirit animal |
A obrigação de ser infalível já me machucou muito, e a autocobrança é algo com que eu tenho que lutar todos os dias, o tempo inteiro. Preciso constantemente me lembrar de que tudo bem errar e não ser sempre a melhor. Preciso fazer força pra ser leve e correr atrás de uma folia na cozinha. Mas existe, e sempre existiu, muito de mim nessa personalidade cabeçuda. Se eu não tirasse uma realização muito genuína nos estudos, acho que as expectativas dos meus pais jamais teriam grudado com tanta força. Elas ficaram porque eram minhas também, desde sempre e eu tenho redescoberto elas agora que voltei a estudar.
Não que eu tivesse parado, mas só agora fazendo minha monografia que voltei a ter uma rotina pesada de estudos. Porque eu escolhi um tema tão difícil que nem eu sabia explicá-lo (sério, eu tive que pedir ajuda pra um professor explicar pra mim mesma o que eu queria com meu projeto) (eu ainda não sei explicar direito, por isso não vou fazer isso agora), e vou usar o método mais complexo por aí. Existiam mais o menos uns 6485 jeitos de fazer isso de forma mais fácil, só que eu escolhi a difícil. Não por ser difícil, mas porque senti aquela coceirinha de me desafiar a fazer algo grande, que me assustasse na mesma medida que me fascinasse.
Li esses dias na newsletter da Isa Sinay (recomendo muito) um troço que me identifiquei muito profundamente:
"Eu, embora ame muitas coisas na vida e não ame meu trabalho todos os dias, sou o tipo de pessoa que sim, se realiza no que faz profissionalmente. Mas mesmo assim foi algo muito libertador quando eu percebi que essa era eu, mas não todo mundo. Porque se realizar em algo é muito mais sobre se encontrar naquilo, sobre aquilo aplacar uma ambição e uma vontade em você. A minha vontade se satisfaz nas pessoas que eu ensino e na construção de raciocínios longos e complexos sobre coisas que a princípio não interessam a ninguém. Eu me sinto feliz nas horas infinitas que eu tenho passado lendo sobre um assunto tão pouco agradável quanto o Holocausto. Eu até quase me sinto feliz nas horas que tenho passado estudando sobre história do hebraico. No entanto, mesmo no tédio, mesmo no "mddc, não quero saber sobre mudanças sintáticas no período pós-exílio da Babilônia" eu estou satisfeita com as minhas escolhas, algo meu está em casa ali."
Não estou estudando nada tão complexo como o Holocausto, muito menos a história do hebraico, mas são coisas que me fazem vibrar por dentro, é uma felicidade quase idiota, porque ainda estou na fase de me ferrar muito e acho que vai ser assim até no final. Mas está ali, gritando pra mim. Tão alto que às vezes fico com medo de me transformar numa acadêmica delusional que define a si mesma e aos outros de acordo com o lattes ou o quanto essa pessoa sabe de Foucault. Já gastei muito caractere e saliva falando contra o modelo acadêmico das coisas, pregando que é muito mais ser divertido e produzir identificação do que ser formalmente bom. Odeio gente arrogante e pretensiosa, metida a inteligente, e odiaria me transformar em alguém assim, mas ao mesmo tempo tô aqui lendo Hegel e achando o máximo e orgulhosa por estar conseguindo produzir algum raciocínio em cima disso.
Tenho problemas?
Tenho problemas?
Provavelmente esse textão não fez o menor sentido pra vocês, mas hoje li esse texto incrível na Pólen sobre aceitação lufana (quão ótimo é escrever para uma revista que trata com seriedade esse tipo de tema?) e ele me fez pensar sobre minha aceitação corvinal, e sobre como nas últimas semanas tenho feito as pazes com a Anna Vitória CDF que eu fui um dia - ou nunca deixei de ser, só estava ali batendo papo na cozinha com os elfos.
Foi essencial pra minha sanidade jogar pra cima a obrigação de ser boa em tudo, que fazia com que meu entusiasmo pelas coisas fosse oprimido por esse imperativo de ser perfeita. Igualmente necessário tem sido redescobrir aquela chama da empolgação, e escrevo isso hoje pra não me esquecer dela: não me importo se for a mais inteligente, tirar a nota mais alta ou fazer o melhor trabalho, contanto que ao final dele eu tenha feito o melhor no que seja melhor pra mim.
Foi essencial pra minha sanidade jogar pra cima a obrigação de ser boa em tudo, que fazia com que meu entusiasmo pelas coisas fosse oprimido por esse imperativo de ser perfeita. Igualmente necessário tem sido redescobrir aquela chama da empolgação, e escrevo isso hoje pra não me esquecer dela: não me importo se for a mais inteligente, tirar a nota mais alta ou fazer o melhor trabalho, contanto que ao final dele eu tenha feito o melhor no que seja melhor pra mim.