Tudo começava quando passávamos o dia mais pra lá do que pra cá. Brincávamos pouco, conversávamos menos, comíamos feito passarinhos. O pai comenta que estamos abatidos, a mãe coloca a mão na testa pra sentir a temperatura, e mesmo sem febre ela comenta,
"Anna Vitória vai adoecer...". No outro dia, batata, amanhecíamos com aquela cara de cachorro sem dono, uma tosse querendo tomar conta, o ouvido falhando... ganhávamos o direito de faltar a aula de ballet pela manhã - que era passada no sofá da sala em companhia de desenhos animados em volume baixo, muito líquido e Tylenol.
Eu não tinha problemas com Tylenol. Me lembro direitinho do potinho branco com o nome do remédio escrito em letras vermelhas. Lembro da cor esverdeada e até mesmo do cheiro. Não era bom, mas também não era ruim. Tomava sem muitas firulas. Tylenol é remédio pra quando se está febril, aqueles 37ºC que você torce desesperadamente para tornarem-se 38ºC, afinal, a partir de 37,5ºC você ganha o direito de faltar de aula. Com 37ºC você toma Tylenol e ganha um bilhetinho da mãe no caderno, avisando a professora do estado febril, os telefones de contato do pai, da mãe e dos avós, e as orientações caso você precise ser medicada.
Só que aí a dor de garganta aumenta você atinge a marca dos tão almejados 37,5ºC e a coordenação da escola liga pros pais te buscarem. Você ainda faz aquele muxoxo e cara de sofrimento para enfatizar que precisa ir embora e rápido, para que ainda dê tempo de assistir a Sessão da Tarde, ou Pokemón, que começava as 17h no Cartoon Network. O pai questiona se não é melhor ligar pra Márcia Berbet, a pediatra, daquele jeito preocupado dos pais, em que cada infecção de garganta é sentença de morte, e a mãe tranquiliza, daquele jeito maternal de quem sabe que existe sempre uma dessas enfermidades a espreita ao menos umas três vezes por ano.
Naquela madrugada você se sente mal e passa pra cama dos seus pais. Achar o termômetro de madrugada é aquele suplício, você começa a suar, o pai coça a cabeça. 38,5ºC é a sentença de febre que ninguém quer ouvir no meio da noite. Significa que em segundos sua mãe vai falar:
"melhor entrarmos com o antinflamatório, mas antes vou dar um banho nela". Não sei se suas respectivas mães já enfiaram vocês num chuveiro meio frio, no meio da noite, pra abaixar a febre. É horrível. Você está morrendo de frio, com o corpo doendo e querendo morrer e sua mãe tentando te tranquilizar,
"é pra abaixar a temperatura, meu bem, só mais mais um pouquinho!".O pai, que havia saído de pijama, todo amarrotado, para comprar Scaflan chega em casa, você toma aquele remédio branco leitoso, mas docinho, e acaba dormindo na cama dos pais, entre os dois.
No outro dia, pela manhã, sua mãe anuncia, nada de escola naquele dia. Você até ficaria feliz se não estivesse se sentindo mal de verdade, tanto que nem consegue chamar as amigas do prédio pra brincar. Os avós passam em casa pra te visitar, tomam um café, "
coitadinha dela, os olhinhos estão fundos, ficou abatidinha", constata a avó, toda chorosa. Como a mãe precisa trabalhar, você passa a tarde na casa da avó, sendo mimada e cuidada o dia inteiro. Chegando lá já tem um local no sofá reservado, com cobertor, travesseiros, meias, e os remédios enfileirados na mesa. De meia em meia hora os pais ligam para saber como você está. "
Ainda está quietinha, mas sem febre, dormiu um pouco, não quer comer".Mais tarde chega a hora da temida Novalgina. Poucas coisas são tão ruins quanto, ou piores, que Novalgina em gotas. Tomar aquele remédio sempre foi um suplício para mim. Minha avó, na melhor das intenções, pingava as gotas numa xícara minúscula de flores,e punha um pouquinho de açúcar. Mal sabia ela que ficava pior ainda. Eu chorava, fazia vômito, meu pai começava a ficar nervoso com a manha. Minha mãe apertava minha boca, do jeito que se faz com cães, e meu pai com toda aquela paciência enfiava a colher de sopa - que nem cabia na minha boca - com a mistura nojenta goela abaixo.
"Se vomitar é pior, vai ter que tomar de novo".
Aí que eu, de volta a 2010 e à semana de provas, encontrei uma Novelgina em gotas no meio dos remédios do meu pai. Ele me sugeriu tomar umas 40 gotinhas, para acabar com a dor e não me deixar ter febre, e tudo isso me veio a mente. Os termômetros, os banhos no meio da noite, a Novalgina com açúcar, o
"se vomitar toma de novo" e acabei deixando a Novalgina de lado. Tomei um inútil comprimido de Tylenol e concluí que era mais legal ficar doente quando criança, mas nessa época eu não podia tomar comprimidos.

Feliz dia das crianças!