domingo, 8 de dezembro de 2013

Aquele com o dedão

Todo mundo tem uma história de dedo amassado na porta do carro pra contar, e se ainda não tem pode esperar - e nem adianta prestar atenção antes de fechar a porta. Aliás, todo mundo tem duas histórias de dedo amassado na porta do carro pra contar, sendo a primeira delas culpa dos pais ou adulto responsável e a segunda é nossa mesmo, naquele dia que não prestamos atenção antes de fechar a porta.

Bom, sexta-feira eu consegui cumprir minha cota obrigatória.

Depois de passar anos ouvindo mamãe contar, às vezes com lágrimas nos olhos por conta de uma culpa que teima em não ir embora, sobre aquele dia que ela fechou meus quatro dedos na porta do carro, agora finalmente posso confiar na minha própria memória na hora de descrever para os outros essa dor visceral. Não gritei como fiz aos quatro anos, mas assim como minha mãe fiquei em dúvida se tinha inchado muito rápido ou se meus dedos são gordos daquele jeito mesmo. 

Depois de esperar a semana inteira e uma aula que parecia não ter fim, saí da faculdade borboletando ansiosamente rumo ao shopping. No meio da faixa de pedestres da primeira rua que eu tinha que atravessar para chegar até lá, sinto os grossos pingos de chuva na minha cabeça. De vestido, sandália aberta e sem guarda-chuva, não tive muita opção senão voltar para o campus e mendigar uma carona pra um amigo. Esperei uns bons vinte minutos porque ele enfrentou um cosplay de dilúvio até chegar lá e achou que não fosse conseguir ficar inteiro pra me contar a história, mas no fim das contas lá estávamos nós no estacionamento, vivos e secos, contemplando o horizonte de uma noite de sexta que nos prometia exatamente aquilo que nós, jovens universitários com 35 anos no coração, mais queríamos da vida: Hambúrguer! Filme! Açaí!

Inebriada por essas perspectivas, não prestei atenção antes de fechar a porta e no meio do caminho tinha um polegar, tinha o meu polegar no meio do caminho e meu Jesus Cristinho como doeu.

I'm Jack's broken heart.

A dor de um dedão amassado na porta do carro é o tipo de cacetada que nos acorda pra vida, o tipo de impacto que faz nascer um clube da luta, o tipo de dor que nos lembra da nossa humanidade. A porta do carro foi com tudo no meu dedo, mas eu senti uma coisa ruim no corpo inteiro e só olhando pra minha mão espremida na porta que eu percebi de onde vinha a perturbação. Foi tão forte que de repente eu não sentia mais nada e comecei a rir junto com meu amigo, gargalhar e exclamar em voz quase alta como eu era burra. E no meio da gargalhada eu senti lágrimas quentes na margem dos meus olhos porque as risadas mandaram a adrenalina fora e a dor veio, pulsando, e eu tinha a impressão que a qualquer momento meu dedo ficaria gigante e vermelho, maior que a minha cabeça, como numa história em quadrinhos onde ele ocuparia o quadrinho inteiro, dividido apenas com as onomatopeias das minhas exclamações de dor e talvez as estrelas e passarinhos em volta da minha cabeça.

I'm Jack's raging bile duct.

Dor, gente, fazia tempo que eu não sentia tanta dor. Ao menos não uma dor tão direta. Vocês já pararam pra pensar que basicamente tudo o que a gente vive atualmente é uma experiência mediada e não direta? Seja a tragédia nas Filipinas que faz chorar quando vista pela TV ou aquela cólica horrorosa, que por mais doída que seja ainda acontece entre você e seu útero que contrai nas horas mais impróprias. Fechar o dedão na porta provoca uma dor intensa, brutal e absolutamente direta, só perde para um soco no nariz vindo de um gancho de esquerda nos fundos de um restaurante, pela madrugada.

I'm Jack's wasted life.

Fui no banheiro, passei uma água no rosto, deixei muita água correr no dedo pulsando e fui encarar a fila. E entre a preocupação com o fato de que o filme que iríamos ver não aparecia no telão animado da bilheteria - mais um obstáculo nos separando da noite de sexta perfeita - e a realização de que eu provavelmente perderia minha unha, o mundo começou a girar. Igual filme, talvez pior, eu comecei a ver pontinhos pretos e coisas desfocadas, os sons ficaram distantes e parecia que eu não tinha energia para pegar um chiclete na bolsa e tentar espantar aquilo. Enfim o quadrinho que me mostra vendo estrelas e com vários passarinhos sádicos girando ao redor da minha cabeça. Não sei como não desmaiei no caminho que percorri trançando as pernas até o banco mais próximo.

I'm Jack's cold swet.

E aí, depois do pior as coisas sempre ficam bem. Ou talvez o fato do meu sonhado hambúrguer ter vindo errado, ou a energia acabando no meio do filme e até mesmo o completo desastre de trem que o remake de Carrie - A Estranha se mostrou ser - tudo isso se juntou para que eu esquecesse completamente do meu dedo. Eu nem teria pensado mais nele não fosse pelo fato de que a vida fica muito mais difícil quando não se tem um polegar opositor pra te ajudar a segurar o garfo com firmeza ou descrever freneticamente o quão ruim é o remake de Carrie para a Taryne no Whatsapp. Não é irônico que uma dor assim tão direta se mostre um obstáculo para experiências que nos fazem experimentar a vida de forma mediada do modo como faz um smartphone? Amassar o dedão na porta do carro nos lembra que somos humanos justamente porque ele nos tira um dos traços evolutivos que possibilitou justamente que fossemos complexos o bastante para sonhar com hambúrgueres, produzir filmes e ir ao cinema. E ao mesmo tempo, estúpidos o suficiente para não prestar atenção na hora de fechar a porta.

I'm Jack's inflamed sense of rejection.

Acordei sábado às seis da manhã com dor. O dedo pulsado, dolorido e enjoado. Tentava voltar a dormir mas olhando aquele roxo que se formada na parte de trás quis muito alcançar meu celular e digitar no Google algo que tivesse a ver com gangrena provocada por uma pancada, só para descartar as possibilidades, sabe como é. Depois pensei na minha unha e na tristeza que seria perdê-la. Pior ainda se alguém viesse me dizer que eu poderia ter evitado isso se tivesse colocado gelo na hora, coisa que não fiz porque meu amigo querido, Matheus Fernandes, disse que eu estava sendo manhosa e que não tinha sido nada. Virei pro outro lado e pensei que se minha unha viesse a cair eu iria lhe enviar os restos mortais pelo correio, como numa mensagem mafiosa. Nada de peixe enrolado no jornal ou cabeça de cavalo sangrando na cama, mas uma unha de dedão infeliz, para ele nunca mais subestimar a minha dor.

I'm Jack's smirking revenge.

Fechar o dedão na porta nos lembra que somos humanos e todo mundo mundo vai passar por isso um dia. E essa é a história do meu.


7 comentários:

  1. Amiga do céu. Não lembro de ter passado pela primeira experiência, mas lembro da segunda em detalhes e olha, agradeço pela minha já ter passado, então, porque essa oprra DÓI. E só de ler seu relato eu senti o meu dedo latejar, porque eu lembro. Meu Deus como eu lembro desse dia. Da dor. Do latejar. Do roxo. Da unha tricando. E dos mais ou menos 7 desmaios (sim) que eu sofri durante o resto do dia. Se tem uma coisa que eu respeito nessa vida é dor de dedo preso em porta (no caso da minha irmã foi a porta da cozinha, que era toda quadriculada de vidro com gesso, e pesadíssima), porque olha, isso dói mais que amor não correspondido e deve doer mais que parto. Aguardemos confirmação em alguns anos.
    Te amo! E força, porque parece que vai ser pra sempre, mas passa!

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  2. Anna do céu, só você mesmo pra conseguir escrever uma crônica sobre um dedão que foi fechado na porta do carro. HAHAHAH. Amiga, como faz pra ter essa criatividade?
    Enfim. Voltando ao assunto da dor, da paranoia e de uma possível unha caída, acredito piamente também que todo mundo terá uma unha fechada na porta também, podendo ser criança ou velho e só Deus (e as pessoas que já tiveram seus dedos espatifados) sabem o quanto dói. Arrisco dizer que é pior do que a dor de um dedo batido numa quina e olha que eu chuto em quinas all the time.

    Talvez a sua unha não caia e fique roxa e escura por um tempo, mas nada de precisar enviar unhas em correio HAHAH

    A última vez que fechei meu dedão assim foi há 3-4 anos e ficou tudo certo. Já já passa!

    Já disse que você é gênia?

    Beijos :)

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  3. Nunca fechei a porta do carro no dedão e estou aterrorizada de medo de quando a minha vez chegar. OH DEUS, POR FAVOR, QUE NUNCA CHEGUE. Já derrubei gaveta e fechei portas normais nos dedos, mas a porta do carro tem algo tenso que me dá calafrios na espinha.

    Vou até arranjar uns galhinhos de arruda, pra ver se afasta esse tragédia da minha vida.

    Ótimo texto AS ALWAYS. <3

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  4. Faz um bom tempo que não faço a proeza de esmagar meus dedinhos... Mas lendo seu texto lembrei de uma vez que sem querer fechei a porta do banheiro na mão de uma conhecida, no fim ela gritou e chorou e eu acabei chorando junto pelo susto/peso na consciência.

    Novembro Inconstante

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  5. Tá permitido chorar de rir no trampo? Eu sei que é uma história de dor, mas não me aguentei aqui. Lembrei da vez em que meu pai passou a roda do carro (sim...) no meu pé e ficou arrependido para o resto da vida. Mas ainda não inventaram dor maior que esmagar o dedão. Sério. Nem chutar a quina da mesa dói tanto ~:

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  6. Acho que esse é um dos melhores textos que eu já li aqui. Eu ri. Ri. Ri. Quase morri de tanto rir. E os trechos do Jack no meio, meu Deus, você quase me matou de tanto rir. HAHAHAHA Eu adoro sua capacidade de transformar desgraças em coisas geniais e em textos fantásticos! E lembrei que meu celular quebrou e estou sem smartphone há umas duas semanas e que isso é mais difícil do que ficar sem facebook, acredite. Acho que nunca fechei a porta no meu dedo, mas já tive a capacidade mental de sair do carro antes do meu pai estacionar e o pneu passar por cima do meu pé, o que foi bastante dolorido, no entanto, a pior dor direta e intensa que já senti foi nas costas, há quase um mês. Eu nem conseguia me mexer, achei que estava tetraplégica, sei lá, foi tenebroso. E tudo porque passei o dia inteiro estudando em posição errada. Ah! Eu já quebrei o mindinho do pé também, essa dor foi tenebrosa, mas a das costas foi pior, também vi bolhinhas pretas e jurei que ia despencar e morrer enquanto minha mãe olhava e dizia "é só uma dorzinha, vou pegar um relaxante muscular que passa". Aham, claro. Odeio quando não dão credibilidade às nossas dores. Nem sempre é drama, humpf!
    Abraços!

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