segunda-feira, 28 de março de 2016

Máquina de lavar

Para ler ouvindo:



A televisão foi a primeira coisa a ser trocada. Nesses doze anos já foram duas. Depois foi o móvel da sala: o antigo agora fica no corredor, dando lugar ao aparador de madeira rústica que minha mãe tanto queria. O sofá ganhou outro forro e as cadeiras também; já é tempo, aliás, de trocar tudo de novo. O microondas foi ideia minha, um dia acordei sismada que o nosso estava emitindo radiação. Não tem como confiar num microondas de mais de dez anos. Já a geladeira foi ideia da minha mãe. A nossa antiga, grande, vazava sem explicação e fazia uns barulhos muito estranhos no meio da noite. Era o nosso bicho papão doméstico, que sempre assustava minhas amigas que vinham dormir em casa. Ela foi substituída por outra, bem menor, que inexplicavelmente abria do lado contrário.

Não tinha nada de errado com ela além disso, mas um dia acordei com uma geladeira enorme me esperando na portaria. Minha mãe sismou que aquela era muito pequena e resolveu trocar. Sobrou pra mim administrar tudo isso, ela esqueceu de me ensinar o que fazer quando entregam uma geladeira na sua casa e obviamente esqueceu também de estar em casa para recebê-la. Não bastasse a geladeira, minha mãe comprou um novo fogão. Eu não pensei que esse dia fosse chegar tão cedo. Nosso fogão era velho, caquético, e só acendia com fósforo, mas segundo ela não se fazem mais fogões desse jeito e comprar outro era assinar um contrato dizendo que ela nunca mais ia passar cinco anos sem trocar o fogão. Depois que ganhamos aquele forno elétrico até parei de me incomodar com o antigo e fiquei até meio triste de vê-lo ir embora, mas não muito. Foi uma mágoa que durou até eu ver que o fogão novo tinha aquela boca gigante no meio, excelente para se fazer um arroz em dez minutos. 

Daí tocam o interfone e avisam: tem um fogão e uma geladeira pra você. Eu não sabia o que fazer. Pedi ajuda pro porteiro, a quem eu peço tantas ajudas ridículas que deve achar que sou meio boba, e ele perguntava as coisas e eu só dizia "não sei". O que vocês vão fazer com as coisas antigas? Não sei. Elevador ou escada? Não sei. Não é mais fácil deixar isso na garagem? Não sei. Onde fica o registro do gás? Não sei moço, nem sabia que gás tinha registro. Olá, meu nome é Anna Vitória e eu sou idiota. No fim das contas o fogão novo foi instalado (o porteiro sabia onde era o registro do gás), o antigo foi para a garagem, a geladeira nova ficou no lugar e a antiga foi pro meio da sala. Depois que eles foram embora comecei a chorar, e até hoje, diante dos desafios da vida, eu e Analu sempre ponderamos que pelo menos não é um entregador de geladeiras surpresa no meio do dia.

No fim do último mês trocamos a máquina de lavar, o último resquício do casamento dos meus pais que ainda existia aqui em casa além de mim. 

Gente, a máquina de lavar. Eu poderia escrever um livro sobre nossa antiga máquina de lavar. Pra começar, desde que me entendo por gente a máquina está meio estragada. Cada dia era uma coisa diferente, mas ela nunca esteve completamente funcional. Minha mãe era a única que mexia nela porque era a única que conseguia fazer com que ela funcionasse. Ela tem essa alavanca que em teoria era só puxar para iniciar a lavagem, mas nada é tão simples quanto parece. Não é força, é jeito - dizem - mas era um jeito tão, mas tão específico que parecia bruxaria. Ou pegadinha. Já consegui fazê-la funcionar algumas vezes, no entanto nunca sabia como e muito menos conseguia repetir o feito. Simplesmente acontecia. Minha mãe era a única que colocava a mão lá como se nada fosse e botava a máquina pra funcionar. Além disso a máquina pulava e fazia barulhos horríveis. E quando eu digo pulava, quero dizer que um dia ela apareceu no meio da cozinha, alagando a casa inteira. Quando digo barulhos horríveis, quero dizer ruim o suficiente para assustar Francisco, o poodle, que não se abala com nada e não apenas latia pra máquina como morria de medo dela. Minha avó passou alguns anos acendendo velas pra que ela nunca explodisse com a gente dentro de casa. 

Minha mãe, no entanto, insistia em repetir o discurso do fogão: não se fazem mais máquinas de lavar como antigamente e comprar uma nova é aceitar que a cada cinco anos (com sorte!) terei que sempre comprar uma nova. Na cabeça dela isso economizava mais dinheiro do que gastar uns 200 reais de dois em dois meses com o mecânico, presença cativa aqui em casa. Seu Raimundo frequenta tanto nossa área de serviço que me viu crescer, de tempos em tempos batendo ponto por aqui, repondo peças, perguntando da escola, a faculdade, não acredito que você formou, o que a máquina aprontou dessa vez? 

Eis que no início do ano minha mãe resolveu: quero uma máquina de lavar nova. Assim, do nada. De repente ela não suportava mais olhar a máquina antiga, tudo era ruim, meu Deus esse barulho, não aguento mais, sua avó está certa, a máquina vai explodir. Coube a mim a missão de escolher uma nova, então eu pesquisei, li mil resenhas, e em três dias sabia mais sobre máquinas de lavar do que soube durante minha vida inteira (o que era bem pouco, pra ser sincera). Poderia citar os prós e contras de uma front load contra uma top load, e até sabia o que diabos era uma front load e uma top load. Pensando em tamanho, energia e preço, escolhemos o modelo, fizemos o pedido e esperamos esse novo paradigma acontecer.

De acordo com o site era pra máquina ser entregue no dia catorze de março, mas ainda era fevereiro quando cheguei em casa e o porteiro disse: tem uma coisa aí pra você. Quando chego na porta de casa, lá está ela, uma máquina de lavar surpresa no meio da tarde. Sem entregador! O que você vai fazer com ela?, perguntou o porteiro. Excelente pergunta, seu José, inclusive queria saber se o senhor tem uma sugestão. 

Seu José me ajudou a colocar a máquina dentro de casa e ela ficou ali no meio da sala até minha mãe resolver o que faríamos com a antiga. Até que foi rápido: Marta, nossa diarista, reivindicou a posse da máquina que ela temeu por todos esses anos que trabalhou aqui, e num dia em que eu não estava em casa (glória) ela foi retirada e a nova foi colocada no lugar com pouca cerimônia. Seu destino foi longo e bom... Não a choreis, diria o poeta.

Já a máquina de lavar nova, que bonita ela é. Coube ao Seu Raimundo as honras de instalá-la, o que ele fez meio borocochô, talvez pensando que não poderia mais contar com o dinheiro quase fixo que ganhava aqui em casa às custas da antiga. Ele me chamou dentro de casa pra me ensinar a mexer, pediu que eu prestasse atenção, só faltou dizer que só ia explicar uma vez. Demonstrou todas as funções daquele painel digital bonito, disse o que a gente podia e não podia fazer, ensinou truques, avisou mil vezes pra não deixá-la na tomada sem necessidade, nunca esquecer o botão de play e pause. Agora tenho uma máquina com play e pause, logo eu, vinte e dois anos lidando com uma máquina que tinha uma única alavanca que eu não sabia puxar. Assentia com a cabeça, entendendo horrores, quando na verdade esquecia tudo tão logo ele ia falando. Depois que ele foi embora fui ler o manual e submeti minha mãe à mesma seção de do's e don'ts, tendo certeza absoluta que ela também não prestava atenção em nada e ia fazer tudo do seu jeito.

Então agora temos uma máquina de lavar de verdade e estou experimentando seus benefícios pela primeira vez, maravilhada, como uma dona de casa de classe média dos anos 50. Por conta de todo o jogo de cintura que a antiga envolvia, a problemática da alavanca, os pulos e barulhos e tudo mais, eu raramente lavava roupa. Eu lavo, você estende, era o que minha mãe sempre dizia, e estender roupas é meu calvário particular. Lavar, no entanto, é uma alegria, me acalma. Gosto de separar as cores e os tipos, usar os ciclos certos, exagerar sem querer no amaciante, ficar ali de cara com a tampa transparente vendo tudo girar, as roupas ficando limpas quase que como mágica, o cheiro gostoso que fica quando elas saem dali. Somos um pontinho azul no meio do nada, poeira das estrelas e vamos todos morrer mesmo, muito provavelmente matando uns aos outros, mas mesmo assim fomos longe o suficiente pra inventar uma máquina que lava roupas. Isso é que é evolução.

Falando assim é como se eu lavasse roupas todos os dias, o que é uma mentira. A verdade é que eu sou metódica, o que me deixa completamente incapacitada de dividir a máquina com a minha mãe. Só uso quando ela viaja, porque tem que ser do meu jeito e eu não suporto vê-la ali apertando os botões sem nenhuma destreza, fazendo tudo como acha que deve, e a gente sempre acaba brigando. Ela, com uma autoridade segura de quem faz isso há anos e sabe melhor, e eu que cheguei agora, achando que sei tudo porque domino o brilhante painel digital. Diante da máquina de lavar reproduzimos a mesma dinâmica desses últimos anos, cada uma a seu tempo deixando pra trás aquilo que não era bom e construindo uma história de novas peças, novos cheiros e programações mais avançadas - assustadas diante de tudo que é novo, porém não menos encantadas com a possibilidade de novos ciclos.

Rápido. Dia-a-dia. Delicado. Cama & Banho. Água quente e fria. Play e pause. Que maravilha é a máquina de lavar.

7 comentários:

  1. Que texto bonito Anna! Não sei porque me lembrou o estilo do Verissimo (o Luis Fernando), ele é leve e engraçado sem ser histérico, acho lindo esse seu talento - e o da Nalu - de transformar cotidiano numa coisa tão poética!

    beijo!

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  2. Me diverti horrores lendo esse texto, ele me trouxe saudosas lembranças de quando fomos trocando os móveis e eletros aqui de casa. Minha mãe chorou por causa do fogão rsrsrsrsrs
    Beijo!

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  3. Amiga, quando li o título vim correndo - sabia que ia ser uma história ótima E que eu ia ser citada, pfvr porque SIM, né. A máquina de lavar aqui de casa também tem um painel cheio de botões, NÃO FAZ BARULHO NENHUM enquanto está funcionando e, prepare-se, CANTA quando termina o serviço. Sério. Ela para de bater a roupa e nos proporciona uma bela musiquinha eletrônica da época de celular monofônico para avisar que tá tudo bem e que a roupa já pode ser tirada de lá. Perguntei pra minha mãe o que eu vou ganhar de presente quando casar e ela foi rápida: UMA MÁQUINA IGUAL À MINHA. Nunca lavei roupa mas DEVE SER ÓTIMA, hahaha.
    E: que Deus nos livre dos entregadores de geladeira.
    PS: Mais uma vez morri de rir com o "NÃO FAÇO A MENOR IDEIA SEU JOSÉ, INCLUSIVE VOCÊ TEM ALGUMA SUGESTÃO?" Porque é exatamente assim que eu lido com pergunta de porteiro. E, obviamente, não faço ideia de onde fica o registro de gás. Nosso apartamento será promissor.
    Te amo!

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  4. Que texto lindo! Engraçado como os eletrodomésticos acabam se tornando resquícios de partes da nossa vida que não necessariamente existem mais, e que muitas vezes só reparamos nisso depois que eles começam a ir embora.

    A máquina daqui de casa é uma top load, minha mãe adora. Será que a front load é melhor? Ela nunca sequer cogitou. O grande apego dela nem é à máquina de lavar, mas sim à centrífuga. A bichinha quase que dança quando ligada, mas a roupa sai praticamente seca de lá, ainda a tempo de secar no varal e ficar com cheirinho de sol.

    Beijos :)

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  5. Anna, adorei esse texto! Me fez pensar no dia em que precisei usar a Máquina de lavar. Eu quase não lavo roupa, na verdade nunca lavo roupa na máquina. Quando preciso de algo, lavo na mão por medo de não programar direito e a máquina estragar minhas roupas. Minha mãe sabe mexer na máquina, eu não. Mas quando meus pais viajaram eu precisei aprender a usar, minha mãe me ensinou a usar a máquina e o tanquinho, mas no dia que precisei entrei em pânico. Trabalho em uma petroquímica, opero equipamentos super complexos e quase fui vencida por uma máquina de lavar hahaha. No fim de algumas, muitas horas, eu consegui, mas se precisar de novo, sei que vou levar uma goleada da lavadora!
    Parabéns pelo texto, e um beijo!

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  6. Como recente (meio que) administradora de (novamente, meio que) um lar, descobri um prazer inesperado em lavar roupa sozinha (se eu disser que na casa dos meus pais o sistema era do mesmo que o seu, minha mãe lava e eu estendo, você acredita? hahah que coincidência). Não sei se é a sensação de realização que acompanha o cheirinho do amaciante (QUE EU MESMA FUI NO MERCADO ESCOLHER <3 Ah, os pequenos prazeres da vida doméstica) ou o fato de não ter manchado ainda nenhuma peça de roupa, jogando alguma meia que solta tinta na lavagem (aquelas que assiste muita televisão de qualidade), mas é tão bom saber que a gente vive num tempo em que não precisamos ficar na beira de um riacho com uma tábua esfregando roupa o dia inteiro hahahah. Só sei que me identifiquei muito com seu texto.

    Queria mesmo era desenvolver o mesmo gosto por passar roupa. Isso ou a sociedade precisa começar a aceitar roupa amarrotada.

    Beijo!

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  7. Só Chicória pra escrever um texto sobre aparadores, fogões e máquinas de lavar e o negócio ficar genial. #fanzoca
    O tanto que amei esse texto não tá escrito. E olha, eu não cozinho, nunca nem lavei roupa, e o máximo que uso é um ferro de passar ou o microondas. Mas devo admitir que ficaria encantada com uma máquina com play e pause e painel digital.
    Minha mãe diz que daqui a pouco vai ter que trocar da máquina. A coitada já deu pane algumas vezes, mas ainda não saiu pulando e vazando água -- mas a antiga fazia.
    E por falar em pular e vazar água, meus vizinhos estavam com uma máquina horrenda. O prédio todo escutava aquilo que mais parecia o gerador de luz de uma empresa de 20 mil pessoas do que uma máquina de lavar. Era horrível, e talvez por vontade de arrumar barraco, eles achavam de bom grado ligar aquela desgraceira as onze horas da noite.
    Graças a um bom Deus eles compraram uma nova e a paz foi restabelecida.

    Beijão! <3

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