segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

V-au-sinha

Ele era ranzinza, rabugento e preguiçoso. Em compensação, tinha uns olhos doces de fazer derreter o coração de qualquer um que se aventurasse a prestar uma atenção mais demorada naquela imensidão cor de âmbar adornadas com manchas feitas pelo tempo e a infância sofrida. Não era mau, sem sombra de dúvidas, quem bem o conhecia sabia que era dono de um coração puro e sincero, apenas não era muito chegado a estranhos. Passava a maior parte dos dias na sacada do apartamento, observando o movimento externo. Para ser um James Stewart em A Janela Indiscreta só lhe faltava mesmo a pequena luneta e a perna quebrada, apesar de que suas pernas eram tão brancas que poderiam até fazer as vezes de gesso.

Gostava particularmente de se colocar em seu observatório no final do dia. O sol já não estava mais tão quente, e seus raios na atmosfera proporcionavam àquela hora específica um espetáculo primoroso de cores e nunces variadas por todo céu, brincando também com as nuvens. Tudo parecia mais bonito naquela hora do dia, o brilho do sol nas folhas, a sombra delas no paralelepípedo das ruas, as senhorinhas varrendo a porta de casa, o cheiro de noite, o cantar dos pássaros mesclado com um silêncio quase celestial: no fundo, bem no fundo, ele era um sentimental. A única coisa que interrompia e azedava sua contemplação do entardecer era uma certa presença que tinha o hábito de passear por ali diariamente, a essa mesma e fatídica hora.

Nunca gostara dela. O semblante altivo, o nariz empinado, o porte de inabalável... bastavam essas características para que uma antipatia ímpar lhe brotasse, ao ponto de fazê-lo abandonar seu posto e ir para dentro da casa, se instalar no quarto escuro, murmurando e maldizendo-a. Ela lhe lembrava seu irmão falecido, com quem ele nunca se dera bem. Tinham os mesmos olhos curiosos, astutos e falsamente complecentes. Era dona de um traseiro peculiar, magro mas detentor de uma ginga inabalável. Odiava o rebolado daquela magrela. Odiava as roupas que usava. E, principalmente, odiava a maneira como ela passava reto por seu prédio e fingia não ouvir os imprópérios que ele lhe proferia, quando a cólera era muita e não havia ninguém próximo para repreendê-lo.

Ela nunca entendera o por que de tanta raiva. Ele chegava a fazer pena ali o dia todo, dependurado naquela maldita sacada, resmungando pro mundo. Primeiro pensou que fosse louco e só, mas depois viu que era pessoal. O problema era ela. Chegou a lhe responder vez ou outra, mas quando descobriu o jogo dele percebeu que melhor do que insultá-lo era deixá-lo brigar sozinho. Quanto mais alheia e tranquila ela cruzava a rua maiores eram as ofensas dele, feito bobo preso no segundo andar. Se ao menos fosse macho para descer e ir resolver - o quê? - seus desentendimentos com ela, mas nem a isso se prestava. O pessoal da rua, outros fuxiqueiros que costumavam sair a essa hora diziam que ele nunca punha os pés nos paralelepípedos enquanto por ali houvesse gente. E se havia, espantava todos com seus brados e jeito bêbado-maníaco-depressivo.

Numa terça-feira sem graça, em que o tempo estava cinza, num chove e não molha tedioso, ele resolveu sair para uma caminhada mais cedo, pensando que a ameaça de chuva iria espantar os outros transeuntes das ruas. Andava de forma calma, caminhando sobre o meio fio, até que um cheiro peculiar fê-lo virar seu rosto. Era ela. Quis fingir que não a vira, mas algo mais forte prendeu seu corpo na direção dela, que caminhava decidida ao encontro dele. Ele também passou a andar na direção dela, os olhos grudados um no outro, em chamas. Nos poucos segundos que o trajeto durou ele pensava em mil coisas, se deveria xingá-la, passar reto, esbofetear-lhe a face, cuspir... e quando os dois finalmente se cruzaram, ficou estático. Ela também. Giraram, trocando de lado, mas sem desgrudar os olhos um do outro, até que ela sorriu. Não sabia bem porque havia feito isso, mas a figura dele frente a frente parecia tão menos ameaçadora, quase frágil e amigável que quis simplesmente sorrir, baixar a guarda.

Ele esperava tudo dela. Que gritasse, tirando satisfação; que corresse, de medo; e até mesmo que mordesse, como vingança por todos os últimos meses em que ele a havia ofendido sem motivo aparente. Aliás, o motivo primeiro das implicâncias agora lhe parecia distante e infantil. Era só porque ela tinha os mesmos olhos que o irmão, que o importunara muito, é verdade, mas que agora nem ali estava mais. Poderia até dizer que sentia falta dele, vez ou outra. A verdade é que no fundo gostava do irmão e se arrependia dos dias turbulentos que viveram juntos, e agora que ele se fora o que sentia era uma enorme culpa e um vazio sem precedentes. E os olhos dela lhe lembravam disso a todo momento e sentia tanta raiva de si mesmo que chegou a pensar que sentia raiva dela. Coitada. Nunca reparara como era engraçadinha, era a primeira vez que a via de perto.

O que aconteceu depois foi tão rápido que até hoje os dois não conseguiram entender. Lá estavam eles, um em frente ao outro, sentindo uma mistura de medo, confusão e súbita simpatia mútua. No segundo seguinte estavam agarrados. Foi ele que lhe envolveu o pescoço com os braços um tanto curtos mas firmes, e ela retribuía com intensos carinhos e beijos e lambidas e até leves mordidas que poderiam constranger o resto da rua que os assistia, mas era uma reconciliação tão urgente e doce que não havia espaço para repressão puritana. E foi tanta felicidade que toda a cidade se iluminou. E foram tantos beijos loucos, tantos ganidoss roucos como não se ouvia mais.

Separaram-se tão rápido como haviam se unido. Nos dias que se seguiam ele continuou a observá-la passar, mas dessa vez em silêncio. Ela também não dizia nada ao passar por sua rua, apenas virava o rosto em sua direção, olhando-o fixamente. Ele se levantava e ia andando ao longo da sacada até que não mais pudesse vê-la, e depois voltava ao seu posto. Decidiu que não iria encontrá-la mais, a cumplicidade no olhar era o máximo e o melhor que poderia se esperar de uma relação entre um poodle e uma pug. Sentia por vezes uma vontade imensa de repetir o feito do primeiro encontro, e chorava baixinho ao vê-la passar, de saudades do toque de sua pele cor de abricot na sua muito branca. Um dia ouviu alguém chamá-la e descobriu depois de meses seu nome, Meg, que ele achou lindo e muito parecido com ela. Até que combinava um pouco com o seu, que era Chico. Sonhava em ver os dois escritos com caligrafia rebuscada e dourada numa espécie bizarra de convite de casamento.

Entretanto, se contentava em olhá-la, e ela o olhava de volta. E o mundo compreendia, e o resto das noites caíram em paz.
(Baseado em fatos reais)

9 comentários:

  1. Hahahahahaha, ai Anna, que gracinha!
    Imaginei um tango argentino, foi muito engraçado! :P

    Essa coisa meio antissocial deve ser característica dos poodles, né? O meu é tão esnobe que chega a dar raiva!


    Beijo

    ResponderExcluir
  2. Gente, até uma história de cachorro você consegue deixar linda e engraçada (não que histórias de cachorros sejam feias e sem-sal)! E eu entendi tudo errado no início, achei que você tava falando do Happy com umA poodle, nem lembrei do pobre Chico. Minhas desculpas a ele =/
    Agora você conta a história romântica dos pôneys, tá? (é, não esqueço deles, haha)

    ;*

    ResponderExcluir
  3. HAHAHA Adorei, Anna! Juro que no começo estava imaginando um rapaz, uma moça e tudo o mais. Quando cheguei numa parte e percebi que estava errada comecei a ler de novo pra poder imaginar toda a coisa nos conformes. Muito bom mesmo.
    Beijos.

    ResponderExcluir
  4. Ai Anna, amei!!! E eu também me confundi, achei que fosse a história do Happy com uma poodle, depois que vi que era o Chico!
    Beijos

    ResponderExcluir
  5. que história liinda!!
    juro que consigo imaginar um livro de contos/crônicas com essa história!
    e o fato de serem cachorros desde o início foi perfeito (:
    parabéns!

    ResponderExcluir
  6. sensacional a revelação no final, além de mudar totalmente o tom da história simplesmente com uma mudança de personagens!

    ResponderExcluir
  7. e eu pensando em um homem de meia idade e uma mulher morena de cabelos na altura dos ombros :s

    adorei isso de 'nos enganar', moça (:

    ResponderExcluir
  8. HAUHAUA eu não imaginava que fossem cachorros!! Muito boa a história =D

    ResponderExcluir
  9. Hahahaa! Amei, Anna! Gostei muito da criatividade e do título, que me lembrou a música do nosso Chico, que eu amo muito!

    ResponderExcluir