Sexta-feira à tarde, numa aula de Mídias e Comunicação que seria seguida de uma reunião de trabalho que preencheria meu fim de semana de obrigações acadêmicas, ao ler um artigo selecionado pela professora, me deparo com uma citação de Fernando Pessoa: "Ai que prazer/Não cumprir um dever/Ter um livro pra ler/E não o fazer!". Aquela estrofe inicial ficou na minha cabeça durante o resto do dia, e foi nela que eu pensei quando, já à noite, voltava pra casa cansada com a perspectiva de ir dormir quase na hora do sol chegar para dar conta de tudo.
Só que eu cheguei em casa, tomei um banho quentinho e resolvi aproveitar a saída de mamãe para comer pizza enquanto assistia Meninas Malvadas. Quem disse que tive coragem para encarar meus trabalhos finais depois dessa obra prima do cinema norte-americano? Pois é. A noite foi longa mesmo, porém preenchida por episódios de Modern Family e Skins e não com os 22 textos que eu precisava reler para a prova de Leitura e Produção de Texto na próxima terça. Deixei pro sábado.
Depois de acordar (tarde), gastei o resto da manhã me preparando psicologicamente para começar a fazer tudo que eu tinha que fazer, me mantendo consciente de que apenas jogando meu sábado feliz pela janela eu poderia usufruir de um domingo de paz. Só que achei que seria uma boa sair pra almoçar. Sabe como é, saco vazio não para em pé e quem sou eu dizer não ante a perspectiva do risoto e do suco de amora de um dos meus restaurantes favoritos? Comi feito um visigodo e voltei para casa no meio da tarde sem conseguir conversar de tão cheia de comida. Me lembrando dos trabalhos e sentindo que antes de um cochilo providencial seria impossível produzir qualquer coisa, joguei os versos de Pessoa no Google e me deparei com o poema Liberdade, que ecoou na minha cabeça durante toda a tarde.
Ai que prazer
Não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
Como tem tempo, não tem pressa…
Não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
Como tem tempo, não tem pressa…
E durante todo o sábado, aquele sábado em que eu tanto tinha pra fazer e que tão pouco efetivamente fiz, fiquei sentindo aquela culpa monstruosa acompanhada pela sensação de tempo jogado pela janela. Quem é procrastinador a valer não se satisfaz em simplesmente postergar um dever: tem que deixar as obrigações de lado e ainda não compensar o pequeno delito com algo satisfatório. Eu poderia ter visto um filme, lido um pouco, dormido, sei lá, mas só o que fiz foi atualizar o Twitter e o Facebook, andar pela casa, abrir o Word, ler alguns textos sem fazer ideia alguma do que estava escrito neles e perceber que a meia-noite chegara e eu tinha apenas umas duas páginas escritas para mostrar de serviço.
Rolando na cama consumida em angústias profundas, pensava no Fernando Pessoa, logo ele, sendo quem foi, afirmando que liberdade era ter a consciência de que o sol não deixava de brilhar se não houvesse mais literatura e sentindo prazer inigualável em não ler os livros que tinha de ler. Mesmo assentadas na vagabundagem, que tão pouco tem a ver com os tempos atuais obcecados pela produtividade, senti inveja das convicções do Fernandinho. Aliás, talvez justamente por não ter nada com a nossa pós-Modernidade digital que eu as tenha admirado tanto, uma vez que desprezo essa cultura de resultados em metas cumpridas, embora cada pedaço minúsculo de mim esteja inserido nela. Caí no sono sabendo que viria neste espaço o quanto antes discordar desse prazer por deveres não cumpridos enquanto reconheceria que era exatamente por esse desprendimento, abundante nele e deficiente em mim, que Fernando Pessoa é cânone da literatura e a única coisa que eu tenho é esse blog.
Domingo à noite, mais precisamente há uns 15 minutos, joguei o poema no Google novamente para poder falar dele com uma propriedade forjada. E não é que descobri que Pessoito é interpretado de forma errada pela maioria das pessoas que leem Liberdade e que eu mesma caíra na pegadinha? Ao menos de acordo com alguns sites que visitei, no manuscrito do poema encontra-se uma nota de Pessoa avisando que antes de seus versos viria uma citação de Sêneca. Este, por sua vez, estóico com convicção salve-salve, valorizava o cumprimento dos deveres acima de tudo e enxergava essa via como caminho único rumo à liberdade. Logo, Fernandão ironizava ao colocar seu eu-lírico para louvar as alegrias de uma vida abnegada das obrigações mundanas. Há quem diga, além disso, que o grande Fernando Pessoa alfinetava com seus versos Alberto Caeiro, seu heterônimo sonhador.
Mas, sendo Caeiro parte de Pessoa, pode-se dizer, então, que ele discordava e ironizava a si próprio. Uma das análises que li colocou Liberdade como um poema no qual Fernando Pessoa, já próximo da morte, revê suas convicções passadas e reconhece que não é possível desprender-se dos deveres e viver livre e saltitante por campos floridos, que, opa, não habemus liberdade por esses caminhos. É um pouco triste constatar isso, na verdade. Me vejo aqui - eu, a blogueira - presa tão cedo aos deveres, livros não lidos e imaginando cataclimas monstruosos como consequência de minha irresponsabilidade e procrastinação, na esperança de que um dia isso passe, até que me deparo com Fernando Pessoa - o cânone - concluindo que isso é papo furado e é melhor procurar outro caminho. Ótimo pensamento pra encerrar o fim de semana, hein?
O propósito do post, obviamente, já se perdeu. A Analu só queria que eu discordasse de um poema e cá estou eu conjecturando acerca da liberdade. Mas se o próprio Fernando Pessoa - novamente, o cânone - desceu de pedestal para discordar de si próprio, quem sou eu para apontar o dedo na cara de alguém nesse momento?
Eu queria usar essa desculpa para sempre mesmo, mas me bate um desespero e acabo virando a noite, no último momento, pra terminar tudo que eu tenho que fazer, argh!
ResponderExcluirMas você escreve bem deeeeeeeemais! Já era pra eu ter acostumado, mas eu ainda me pego fazendo comentários abobados enquanto leio, pensando: "Meu Jesus, como essa menina escreve"!
ResponderExcluirPost maravilhoso. Demorou, mas arrasou e discordou do poeta como ninguém! E como até ele mesmo discordou dele, eu também discordo. Duvido que algum dia nessa minha parca existência eu consiga atingir a elevação espiritual necessária para sentir a liberdade de um dever não feito. Sim, porque como toda boa procrastinadora, eu não faço o dever, fico pensando que deveria estar fazendo, não faço nada de engrandecedor enquanto não o faço, pois estou pensando em fazê-lo, e aí nada acontece enquanto eu fico no facebook.
Beijos.
Amo você.
Fernando me fascina, afinal, ele foi tantos em um só! queria ser assim também, ter um outro lado que pudesse se desprender de tudo sem o peso da consciencia, queria ter um alberto em mim agora, pra parar de brigar tanto comigo mesma por ter acordado tarde nesse domingão de meu deus e ter que compensar nessa madrugada :( mas é isso aí, é a vida...
ResponderExcluirDepois você fica tímida quando a gente te tieta e chama de gênia. Olha esse post, cara! Tô até com vergonha do meu depois de ter lido ele. Fora que tem toda uma história legal, né? Não apenas a discordância por si só. E eu preciso discordar do Pessoinha também. Minha procrastinação é sinônimo de tortura porque SEMPRE fico com aquele mal estar característico de quem deveria estar estudando, mas está no Facebook. E é por essas e outras que me identifico tanto com você, Annokita! Apesar de você saber descrever os meus sentimentos bem melhor do que eu jamais conseguiria.
ResponderExcluirTe amo <3
simplesmente um prazer é a leitura do teu blog. fiquei encantado. com certeza passarei aqui mais vezes. grande abraço. ;)
ResponderExcluirobrigada =)
ExcluirSou uma mestra da procrastinação. Às vezes enrolo até o fim dos tempos para fazer algo, mas nunca deixei de entregar nenhum trabalho. Sei até que momento tenho que procrastinar e quando tenho que dar um tapa na minha cara para eu acordar para a vida e fazer meus deveres.
ResponderExcluirAdorei realmente seu post, provavelmente se visse esse poema também cairia na pegadinha. Convenhamos, procrastinar lendo algum livro legal é a melhor coisa do mundo.
Adorei o texto!
ResponderExcluirO pior é que eu geralmente deixo de fazer coisas "importantes" para ler livros que me agradam. Aí percebo que li 80 páginas facilmente, sem perceber, mas cadê a coragem para ler 30 páginas de algo relacionado à faculdade? Como o tempo e a vontade podem ser coisas tão relativas?
Beijos
Pelo menos você ainda lê os livros que te agradam! Eu, além de não fazer o que eu devo, acabo por não fazer nada, o que é ainda pior. :(
ExcluirMenina, eu já fiz muito isso. Muitas vezes não tive clima para cumprir as obrigações de estudo. Trocava por um livro, uma tarde com as amigas, uma crônica a ser escrita. O ócio criativo nasce, no geral, dessas obrigações que nos comprovam. E também já desisti de muita leitura por conta disso. Abraços, Anna.
ResponderExcluirToda vez que leio seu blog morro de rir. Primeiro porque você escreve bem demais e quando é pra ser engraçada, consegue level mil. Depois porque eu ouço você lendo o texto com voz de pônei! Agora imagine voz de pônei falando "Ai, que prazer não cumprir um dever". HAHAHAHAHAHAHA
ResponderExcluirQuanto à procastinação, ô mal do século. Quantas vezes já não perdi o dia fazendo nada no facebook e twitter e me sentindo tal como um Big Mac: barato e inútil. Várias vezes já pesquisei sobre métodos pra ser mais produtiva, só que acabei no facebook de novo.
Sai de mim, Zuckerberg!
Beijo, Annoca! <3
AH, que prazer mesmo!
ResponderExcluirLevando no sentido literal, é um enorme prazer enquanto dura, ruim é ter que correr atrás do tempo perdido, porque depois a gente acaba tendo que correr! rss
Mas eu tenho feito isso, depois fico com a sensação de inutilidade. Mas sabe, todo mundo devia fazer nada algum dia, devia mesmo!