terça-feira, 11 de novembro de 2014

O Harrison Ford do Busão™

Esse post é parte do meu projeto 1001 Pessoas, inspirado nesse blog aqui.

Harrison Ford do Busão™ é cobrador do ônibus que eu pego cotidianamente. Se a sua vida fosse uma novela, ele seria aquele ex-noivo da sua avó que foi pra guerra e reapareceu anos depois, para semear dúvida e fazer seu avô calcular quando foi mesmo que sua avó ficou grávida do primeiro filho. Ele se parece com o Harrison Ford, tem uma cara de mau, e tem certeza que eu sou idiota. 

Não é como se eu não desse motivos. Tenho uma incapacidade crônica de entrar no ônibus sem fazer papel de idiota em algum momento, e desconfio muito que ele e o motorista tenham um bolão para ver qual será a trapalhada da vez. O mais comum é que eu prenda minha bolsa ou os fones de ouvido na catraca e leve um tranco de mim mesma tentando sair desavisada, mas é comum que eu perca o equilíbrio no corredor, tropece na hora de sentar no banco mais alto, deixe cair as moedas no chão, e um dia eu confundi uma moeda de R$025 com uma de R$1 e levei uns três minutos para entender por que o Harrison Ford estava dizendo que faltava dinheiro pra minha passagem. 

Quando comecei a andar nessa linha, tinha impressão que, além de me achar idiota, o Harrison Ford me odiava. A cada vez que eu me envergonhava na sua frente sentia seu olhar de desprezo e decepção pra mim, como quem pensa na irresponsabilidade das pessoas que um dia deixaram eu sair de casa desacompanhada, como quem tem certeza de que não ganha o suficiente pra ter que aturar meu espetáculo de estupidez dia sim dia não. O Harrison Ford do Busão™ não tinha a menor paciência comigo. 

No entanto, com o tempo, eu percebi que a dinâmica da nossa relação mudou um pouco, e vem melhorando a cada dia que passa. Notei a mudança de ares quando ele começou a fazer um meneio com a cabeça sempre que eu descia do ônibus, movimento que foi logo seguido por uma boa tarde audível na hora que eu entro. Teve também o dia que ele percebeu que eu estava distraída na minha leitura e não tinha apertado o botão de parar, então ele disse, meio que entre os dentes mas alto o bastante pra eu ouvir: ô mocinha, sua parada é a próxima. Nesse dia eu soube que as coisas entre a gente tinham mudado, e, satisfeita, pensei comigo que os brutos também são gentis.

Só que nenhum aviso amigo ou boa tarde sincero poderiam me preparar para o que estava para vir. Aconteceu um dia que eu estava por demais distraída no meu celular que não vi o ônibus se aproximar do ponto. Ele já tinha passado no embalo quando comecei a acenar e pular, feito boa idiota que sou, e eu já estava começando a pensar se meu dinheiro dava para um táxi quando, por um milagre, o ônibus parou no fim do quarteirão. Fui correndo até ele, entrei ofegante e mortificada, já imaginando o olhar gelado de desaprovação que ganharia do Harrison Ford, e quando cheguei na catraca, ele estava rindo. Rindo não, gargalhando. 

Da minha cara, óbvio.

Poderia me sentir ofendida, mas juro que prefiro ele se divertindo às minhas custas do que me olhando como se eu fosse incapaz, ou como quem acha que eu merecia ser atropelada por um ônibus. Ele estava rindo de mim, sim, mas ele também pediu pra parar fora do ponto pra me ajudar. E quando eu entrei ele podia ter tripudiado, ele tinha direito de tripudiar pois só idiotas muito profissionais perdem o ônibus por causa do Whatsapp, mas só tive um: foi quase, hein como reação. Pois é, moço, foi quase mesmo, obrigada pelo apoio, isso não vai se repetir.

Em poucos meses fomos do ódio à pena, e dessa pena parece que chegamos a uma estranha cumplicidade feita de acenos de cabeça, paradas de emergência, e parceria na hora de catar moedas espalhadas pelo chão. Como não andei de ônibus semana passada, hoje o tio Harrison comentou sobre minha ausência: tá sumida, mocinha, tava matando aula semana passada? Foi a maior quantidade de palavras que eu já ouvi saindo da sua boca, e eu boto fé que qualquer dia desses ele vai reclamar do calor, ou comentar sobre o futebol, ou até, talvez, me contar um caso sobre aquele romance da juventude que foi interrompido pela guerra. Porque os brutos também amam, e esse parece ser o começo de uma bela amizade. 

13 comentários:

  1. Eu adoro esses textos sobre o cotidiano, sabe? De um jeitinho muito lindo você descrever uma situação peculiar de forma engraçada e muito bem escrita.

    Parabéns pelo post e pelo blog. Adorei este texto e dei risada em alguns momentos. É bom começar o dia com uma leitura tão boa.

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  2. Amiga, que delícia. Óbvio que a gente é tão parecida que eu também vivo criando histórias com as pessoas que me veem, imaginando o que diabos elas pensam de mim. Eu também enrolo a bolsa frequentemente na catraca do ônibus. E nunca esqueça: a primeira ideia que eu tive pra máfia nasceu porque um dia eu esqueci de apertar meu botão pra descer do ônibus e o motorista disse: "Não é o seu, moça?" e riu enquanto eu agradecia. <3

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Esse projeto é tão bonito que, INEVITAVELMENTE, eu sempre termino com os olhos marejados. Obrigado, miga.

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  5. Hahaha, sensacional! Eu tive uma relação dessas com um cobrador uma vez, ele era super gentil, mas como o Harrison Ford, não trocávamos mais do que bom dia e boa tarde. Pausa pra outro comentário: Vi que tu estás lendo Mar de Rosas. Eu li Álbum de Fotografia depois da tua resenha e gostei bastante, tô super curiosa pra ler os outros da sequencia. Bjs!
    Ps: Te indiquei lá no blog pra responder uma TAG. :]

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  6. Adoro suas histórias do cotidiano, você as conta maravilhosamente bem. Me identifiquei com a parte de fazer papel de idiota ao entrar no ônibus, mas a gente se acostuma, aquele veículo não tem capacidade de manter alguém em equilíbrio. Mas quem sabe vocês não começam uma parceria agora ein? Se ele te ajudar nas paradas já vale apena.
    Bjs!

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  7. Aaaaah que história incrível! Harrison Ford com certeza já tem um enorme carinho por ti.
    Acho uma coisa mágica a relação que nasce do nada com pessoas do nosso cotidiano. É tão legal.. é o que me motiva a ser simpática em dias de estresse também, porque nunca se sabe quando vamos precisar de uma ajudinha das pessoas que passam por nós todos os dias. :)
    Beijos! <3

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  8. Anna Vitória, que falta de consideração a sua. Eu to no escritório! Eu não posso rir alto, então tô aqui me contorcendo na cadeira, morrendo de rir tentando não emitir sons.
    De qualquer forma, to torcendo muito pela amizade de vocês e já to vendo o Nicholas Sparks escrevendo a história do Harrison Ford que também ama.
    Beijos!

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  9. Os seus posts dessa série são sempre muito gostosos de ler! HAUAHUAHUA Pra não te deixar sozinha nessa: também consigo arranjar um jeito de me enrolar no ônibus toda vez que entro em um, de forma que já inclusive prendi a mochila na catraca de tal jeito que a moça atrás de mim comentou, rindo, que "nunca viu ninguém conseguir fazer uma coisa dessas". Acho que o Harrison Ford do Busão acabou é cativado pelo seu jeito meio estabanado. Coisa de vô, né. hahaha
    Beijo!

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  10. Li tudo rindo do começo ao fim hahaha Cara, você é genial!

    :*

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  11. A parte mais genial do post está logo no início: "Se a sua vida fosse uma novela, ele seria aquele ex-noivo da sua avó que foi pra guerra e reapareceu anos depois, para semear dúvida e fazer seu avô calcular quando foi mesmo que sua avó ficou grávida do primeiro filho. "
    Não que o resto do post tenha sido ruim, mas isso foi absolutamente genial.
    Não tenho história parecida pra contar. Conheço uns motoristas e trocadores que são amorzinhos, e uns que são antipáticos, mas nada pessoal comigo.
    De qualquer forma, acho que preferiria o desprezo que a gargalhada. A gargalhada incomoda, e eu fico puta muito fácil. Com a cara de desprezo eu não me importaria, Harrison Ford do Busão™ não paga as minhas contas.

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  12. Amei seu texto. Pensando bem, tenho também algumas figurinhas na rotina diária que dariam ótimas crônicas!
    Bj e fk c Deus.
    Nana
    http://procurandoamigosvirtuais.blogspot.com.br

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  13. Ah, Harrison Ford, aquele olhar de determinação, meio bravo e até rude, mas até o Ford da vida real pode ser gentil (e ajudar a avisar que o ponto é o próximo). Acho que a dinâmica das relações vai mudando e, além disso, se tornando melhor. Não? ^^
    Tomara mesmo que ele conte algum caso amoroso da juventude e tal, para estreitar laços, enfim. :)
    Ando adorando os textos sobre tantas pessoas, mesmo! :D
    Beijão, Min!

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