Recentemente li no blog do Jim Anotsu um texto muito bacana sobre os pequenos milagres da ficção, coisa que, segundo ele, acontecem só uma vez a cada muitos livros. Você sabe do que eu estou falando. É aquele momento em você lê e sabe que aquilo é verdade, mesmo que não seja. É aquele momento em você lê e diz: é isso, ainda que você não saiba o que o isso de fato seja. Desconfio que os milagres da ficção operam em duas frequências igualmente virtuosas: ou eles te dizem alguma coisa que você precisa saber - ou sempre soube, mas só queria confirmar ou então queria uma metáfora bem bonita que a justificasse - ou fazem você questionar tudo que você sabe. Os de santo mais forte te deixam com a sensação de que você não sabe nada, mas tudo bem.
Milagre da ficção foi o termo que conseguiu definir de forma mais adequada a impressão que tive ao ler Americanah, meu primeiro contato com a literatura de uma mulher de quem eu já era tão fã que me sentia no direito de tratar por Chimmy - Chimamanda Ngozi Adichie, para os nem tão íntimos (ou abusados) assim. Logo na primeira página, o narrador apresenta não Ifemelu, a protagonista, mas a forma como ela percebia os cheiros de cada cidade onde morou. Descobrimos ali que Princeton era boa porque não tinha cheiro de nada, e Chimamanda escreve que sua heroína, "acima de tudo, gostava do fato de que, nesse lugar de conforto afluente, podia fingir ser outra pessoa, alguém que tivera acesso a esse sagrado clube americano, alguém com os adornos da certeza".
É impressionante como tão poucas palavras conseguem dar a dimensão de toda uma sociedade, e como uma única observação, uma expressão que poderia passar despercebida, consegue dar o tom do espírito de uma nação, uma impressão sucinta e absolutamente precisa da noção de privilégio. Adornos da certeza: é isso. Na primeira página, acendi uma vela para Chimamanda e agradeci pelo milagre alcançado.
A escritora ficou mais conhecida por seu discurso, o incrível "Sejamos Todos Feministas", ter sido sampleado na música da Beyoncé, mas não sei se todo mundo conhece sua outra palestra no TED, na qual ela discorre sobre os perigos de se contar uma única história. Nele, Chimmy, nossa prima mais velha e descolada, fala que a consequência dessa narrativa única é a desumanização dos sujeitos, uma vez que ninguém é único. Nigeriana, ela obviamente fala de sua experiência como uma garota de classe média que foi estudar nos Estados Unidos e se viu presa naquela única história que a maioria dos americanos parecia ter sobre a África inteira e todos que vivem nela: a da miséria, da fome, da tragédia.
Assim como Chimamanda, Ifemelu, a protagonista do livro, vem de uma família de classe média nigeriana e cresceu num contexto que eu, nas profundezas abissais da minha ignorância, nunca tinha associado ao país. Ifemelu e seus amigos eram jovens inteligentes, ambiciosos, cheios de leitura e sonhos, e sonhavam com a América ou com a Inglaterra, os destinos mais comuns, não porque estavam fugindo da fome ou da peste, mas porque, assim como todos, queriam escolhas, oportunidades, queriam crescer à altura do próprio potencial. Ou seja, nem um pouco diferentes da gente aqui mendigando vaga de intercâmbio em qualquer universidade estrangeira, porque estudar fora é vencer na vida.
No entanto, ao chegar nos Estados Unidos, Ifemelu descobre um mundo novo. Ela descobre, pela primeira vez, que é negra, coisa que até então nunca tinha parado para problematizar e que se torna imediatamente o rótulo que é obrigada a carregar naquele país que jura que superou o racismo, mas que é incapaz de apontar para alguém e dizer que essa pessoa é negra sem constrangimento. O livro, aliás, começa pelo final, quando Ifemelu resolve deixar os Estados Unidos justamente porque está cansada de ter que ser negra em tempo integral. A boa filha à Nigéria torna para que possa ser ela mesma, ao menos um pouquinho.
Se dentro da história Ifemelu sente que está assumindo um papel pré-estabelecido na maior parte do tempo - a blogueira, a namorada negra, etc - como personagem de um livro ela é perfeita em ser quem é. Chega a ser bizarro como a personagem existe com clareza na minha imaginação, como ela é completa e complexa. Gosto da ternura e da forma como, ao mesmo tempo, ela julga as pessoas ao seu redor, mesmo não sabendo que isso é legal. Gosto de como ela quer passar uma boa impressão apesar de tudo, e de como, mesmo não querendo, ela se acha superior às suas amigas que ficaram na Nigéria. Gosto de como ela existe e sou absolutamente fã do fato de ela ser a única dona da sua história - que é, também, uma história de amor.
Na contracapa da edição da Companhia das Letras (que está toda muito maravilhosa, invistam), junto com as aspas cheias de louvores das pessoas de sempre, a primeira chamada que se lê é de que o livro promete "uma história de amor implacável". Não é um livro sobre uma negra na América, não é um livro que denuncia o racismo, não é o livro sobre uma geração: é uma história de amor. Junto da narração, Americanah traz alguns textos do blog em que Ifemelu escreve suas impressões justamente sobre as questões raciais nos Estados Unidos, e num desses posts ela fala que as mulheres amam o Obama porque ele se casou com uma mulher negra e esse tipo de representatividade deu às mulheres negras a chance de se verem, pela primeira vez, não como a melhor amiga espirituosa da mocinha, mas como a dona da história que encontra um grande amor no final do filme.
Mais uma vez: é isso.
2015 tem sido um ano generoso comigo literariamente falando, mas nenhum livro me tocou tão profundamente como Americanah o fez. Como o Jim Anotsu disse, milagres da ficção são raros, e por isso preciosos. Esse livro esfregou minha cara nos meus próprios privilégios, me trouxe insights não só sobre a questão racial, mas sobre imigração, sobre ser e perceber o outro e, com suas lições de empatia, definitivamente me fez uma pessoa melhor. Eu me senti burra o tempo inteiro, mas é pra isso que servem os bons livros.
Americanah me fez chorar quando Ifemelu alisa os cabelos, porque entendi o que o cabelo representava na identidade dela, e me fez chorar quando fala sobre a eleição do Obama, porque entendi o que, de fato, isso representou, e me fez chorar com seu grande gesto romântico do final, digno de uma comédia romântica estúpida qualquer, tão inconsequente quanto, porque entendi que aquela era uma história de verdade, ainda que não seja e esse é o grande milagre da literatura.
É isso. Leiam Americanah, acendam uma vela para Chimamanda antes de dormir and bow dow, bitches.
Até hoje eu achava que esse livro tinha uma pegada mais teórica, discutindo racismo e o que é ser negro nos Estados Unidos. Por isso nunca me interessei por ele. Mas são resenhas assim como a sua que podem salvar um livro de um julgamento errado. Já vou até colocar na minha lista de futuras compras :)
ResponderExcluirAmiga, que resenha maravilhosa, pqp, como você escreve bem. Não sei nem por onde começo a comentar, talvez evidenciando isso aqui: "Eu me senti burra o tempo inteiro, mas é pra isso que servem os bons livros", porque também senti isso durante a leitura toda (e me senti bastante assim também em A Trama do Casamento que você finalmente lerá, hehe) e levar tapa na cara da literatura me deixa muito feliz (?), esse é, claramente, nosso tipo de amor bandido, HAHAHA.
ResponderExcluirAí quero falar sobre um fato mais aleatório, sobre isso que você disse lá em cima sobre o tema da palestra dela, de como representar as pessoas por fora do seu imaginário. Uma vez eu li as páginas vermelhas da TPM com a Dira Paes e eu amei demais. Nunca esqueci. Porque ela fala que era do norte (ou nordeste?) e que chegou onde chegou, e todo mundo já imagina ela com cara de cangaceira batalhadora, e ela morre de rir na entrevista contando que ela era de classe média alta, estudava numa das escolas mais caras da cidade, tinha altos cursos e tals. Eu tive que rir e abaixar a cabeça de vergonha porque SUPER estava imaginando a coitadinha cangaceira - só porque ela tinha vindo do nordeste (ou do norte? Sei lá, hahaha). Acho muito importante levar essas porradas pra me tirar do meu mundinho e me acordar, seja para que lado for. E: vamos bichar a nossa próxima obra de Chimmy? <3
Te amo.
(Como assim só 01 mimo? Essa blogosfera é uma instituição falida)
Também li Americanah esse ano, mas acho que sou egocêntrica demais pra não preferir os livros que dialogam mais diretamente comigo (que, no caso, foram Eu sou o mensageiro e A trama do casamento). Mas o livro não deixa de ser muito, muito bom. Conheci a Chimamanda por The Danger of a Single Story, e além de achar ela incrível, me deu uma noção do quanto minhas leituras não estavam abrindo meus ouvidos pras outras histórias, sabe? E eu me prometi que ia ler mais vozes - inclusive a da própria Chimamanda.
ResponderExcluirMas então. Os comentários da Ifemelu sobre a sociedade, na narrativa ou no blog, foram sensacionais, e um aprendizado enorme. Reconhecer os nossos próprios privilégios não é bom, não é agradável, mas é necessário. Fora isso, os personagens são ótimos, especialmente a Ifemelu e eu entendo por que você elogia tanto. Mas... mas, mas. Confesso que a história de amor eu não comprei tão fácil. O que não me impediu de entender que eu estava diante de uma autora (e uma obra) sensacional, e eu estou muito curiosa pra ler mais literatura escrita por ela.
Mas, enfim. Gostei do seu comentário sobre como você se sentiu burra o tempo todo, mas sobre os grandes livros estarem aí pra isso porque: sim! É isso, é isso mesmo. Eu costumava ter muito medo de me sentir assim quando comecei a estudar Letras, até porque achava que era só eu. Com o tempo fui descobrindo o quanto é importante que a gente se sinta assim mesmo. Quer dizer que a gente está se desafiando, buscando mais, né?
Ótima resenha!
Beijo
Amiga, ontem vi uma mina negra no metrô segurando Americanah CHEIO DE FLAGS. Passei o percurso inteiro encarando ela com olhos arregalados, tentando fazer uma nova melhor amiga para a via inteira, mas ela não me deu a menor bola, e eu não consegui falar o que eu queria: que esse livro é FODA.
ResponderExcluirAmei. Dei para minha mãe ler, e logo em seguida ela leu "Beijos, Brigadeiros e sei lá o que" (hahahah), e me ligou frustrada, porque amou tanto a Ifemelu que não quer mais saber de mocinhas que não sejam tão incríveis como ela.
Obrigada Americanah por existir.
Quero bichar o próximo livro com vocês!
Que resenha maravilhosa! Agora me sinto uma inútil por não ter lido Americanah ainda. É nessas horas que eu queria ter um pouco mais de dinheiro no bolso ~~
ResponderExcluirE vivam os pequenos milagres com os quais a literatura nos presenteia. #AmoMuito
voltei pra dizer que assisti ao discurso que você colocou no post e to in love por essa mulher ;___________;
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