quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Paper dreams, honey


Eu li Reparação, do Ian McEwan, pela primeira vez quando eu tinha por volta de 13 anos e eu adorei esse livro com uma intensidade que só é possível quando você tem 13 anos e leu o primeiro livro adulto da sua vida, entendeu alguma coisa e gostou disso. Hoje, depois de já o ter relido incontáveis vezes – e ele continua sendo um dos meus favoritos – me pergunto se eu tinha mesmo entendido alguma coisa ou no mínimo entendido certo, porque ele segue me surpreendendo. Todavia, uma das lembranças mais fortes que tenho dessa primeira leitura foi a identificação absurda que senti com a personagem central, Briony Tallis, uma garota que tinha quase a mesma idade que eu, que vivia muito mais dentro de si do que no mundo, e que pensava pra caramba. 

Dentre todas as suas conjecturas, uma delas nunca sai da minha cabeça. Pensando sobre as pessoas ao seu redor, ela reflete: ser Cecília seria uma coisa tão intensa quanto ser Briony? Sua irmã também teria um eu verdadeiro por trás da onda que se quebrava, e passaria tempo pensando nisso, com o dedo quase encostado na cara? E as outras pessoas, inclusive seu pai, e Betty, e Hardman? Se a resposta fosse sim, então o mundo, o mundo social, era insuportavelmente complicado, dois bilhões de vozes, os pensamentos de todo mundo a se debater, todos com igual importância, investindo tanto na vida quanto os outros, cada um se achando o único, quando ninguém era único.

Eu sempre achei a ideia de estar rodeada de pessoas, que existem de forma tão intensa, complexa e concreta quanto eu, um tanto quanto desconcertante. Parece bobo, parece óbvio, mas se você realmente parar pra pensar nisso, vai entender do que eu falo. Mas hoje eu não vou escrever sobre Reparação, fica pra outra vez. Quero falar de Paper Towns, do John Green, e ele tem tudo a ver com essa proposta lançada por Ian McEwan de que as pessoas são sempre muito mais do que a gente imagina sobre elas. Porque pensar em alguém e esperar algo dessa pessoa é projetar nela um pouco daquilo que somos e isso, Quentin Jacobsen, personagem principal, vai descobrir que pode ser um problema.

Como a maior parte dos protagonistas masculinos do John Green, Quentin também é um garoto meio nerd e retraído, longe de ser o cara mais popular da escola. A diferença é que ele parece estar à vontade nessa condição, que não chega a ser incômoda. Ele tem amigos, já teve uma namorada, faz planos para o futuro, há anos não apanha do valentão da escola e falta um mês para as aulas acabarem. Então, numa noite, sua vizinha e ex-amiga de infância Margo Roth Spiegelman bate em sua janela e o convida para uma aventura pelas ruas quase desertas de Orlando durante a madrugada . Nessa jornada, Quentin vai ser o motorista de Margo e eventual ajudante enquanto ela prega peças em algumas pessoas que a decepcionaram, como o namorado que a traiu com a melhor amiga, a amiga que sabia e não disse nada, um cara idiota da escola, etc. Depois de fazer tudo isso, os dois invadem o SeaWorld, dançam foxtrot no parque deserto, sobem no alto de um prédio e observam a cidade onde moram do alto, trocam um abracinho e Margo desaparece.

Margo Roth Spiegelman é vizinha de Quentin desde sempre e foi sua amiga durante toda a infância. Juntos, eles encontraram o corpo de um homem que se matou no parquinho do bairro, mas com o tempo eles acabaram se afastando. Enquanto Quentin virou nerd e começou a andar com o pessoal da banda da escola, Margo cresceu e virou a garota mais descolada e misteriosa do lugar, dona de várias histórias malucas e extraordinárias, incluindo alguns eventuais desaparecimentos. No entanto, ao contrário das outras vezes, Margo não voltou para casa após três, quatro dias, e seus pais, cansados dos rompantes da garota, decidiram simplesmente não procurá-la – afinal, legalmente, ela já era maior de idade e dona do próprio nariz.

E é aí que Quentin entra na história. Porque é claro que ao longo dos anos a distância fez com que ele passasse a ver Margo como um mito, um ser superior e inalcançável, a garota mais fantástica que ele já conhecera, aquela que ele sonha ter ao seu lado, mas termina encarando-a de longe nos intervalos da escola. No entanto, seu sumiço misterioso logo depois daquela noite maluca que eles tiveram faz com que ele pense que, de certa forma, Margo queria que ele fosse atrás dela e pensando nisso ele junta seus dois melhores amigos, Ben e Radar, numa investigação que visa descobrir o paradeiro da garota. 

Essa é a trama principal do livro e John Green segura o suspense muito bem, ao mesmo tempo que intercala a narração do mistério com episódios cotidianos da vida no colégio que são altamente identificáveis e contam, ainda, com fantásticos personagens secundários, queridos ao ponto de nos deixar com saudades depois que o livro termina. Muitos dos insights que Quentin tem com relação ao rumo tomado por Margo em seu sumiço foram conseguidos graças à exaustiva leitura de um poema de Walt Whitman, “Song of myself”, que ela deixa como pista, grifado em um livro. A referência é bacana e a análise que o autor faz dela é também uma boa porta de entrada pra quem deseja conhecer o trabalho do poeta americano. 

Ok, mas onde estão Ian McEwan, Briony Tallis e as cidades de papel nessa história? É simples: para tentar encontrar Margo, Quentin precisa adivinhar seus passos, conhecer seu interior e pensar como ela. Mas isso não é tão simples assim, porque talvez não seja possível você deixar de ser você para ser outra pessoa. Da mesma forma, Quentin descobre que um de seus maiores erros, e um erro que muitas pessoas cometeram, foi o de pensar que Margo (e muitas outras pessoas) fossem muito mais do que ela (e outros) de fato fossem, pessoas, com tantos medos, angustias, problemas e fraquezas como ele. A metáfora da cidade e das pessoas de papel diz respeito a isso, a forma plana que outros nos enxergam e tudo aquilo que nós somos de verdade que fica por trás.

Isso é o máximo que consigo dizer sem estragar a experiência da leitura, pois o bacana é descobrir tudo isso juntamente com Quentin e associar essas epifanias com sua própria vida e as pessoas que estão ao nosso redor. É mesmo muito louco pensar que elas existem, desse jeito maluco e profundo que é a nossa própria existência, mas não podemos nos esquecer que, em contrapartida, as pessoas são como nós. Pessoas. Seja lá o que isso signifique.

(Texto publicado originalmente na edição mais recente da Gazeta Feminina. A Mayra e a Mimi escreveram lindamente sobre temas relacionados ao livro, e eu recomendo fortemente que vocês leiam o que elas tem a dizer)

6 comentários:

  1. Primeiro queria dizer que eu li Reparação no começo desse ano e virou facilmente um dos meus livros favoritos. E vou te falar que li muito porque sei que era um dos seus livros favoritos. Tinha curiosidade de ler, mas como achei o filme, que vi antes, só ok, acabei meio que desanimando na época.

    E mesmo com 21 anos, me identifiquei bastante com a Briony. Eu lembro muito dessa parte que você citou, e lembro também de uma que ela fala do movimento das mãos, do limite entre o pensar e o fazer. Não sei se você se lembra. Enfim, esse livro é pra sempre e vou ver se releio ano que vem.

    Quanto a Paper Towns, confesso que meu interesse é médio, mas curti a aproximação que você fez das histórias. É capaz de eu dar uma chance uma hora dessas :)

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  2. Dei Reparação de presente de aniversário pra uma amiga e ela adorou. Fiquei com uma vontade maior ainda de querer ler, apesar de já ter visto o filme umas 3 vezes. (McAvoy <3).

    Quanto ao Paper Towns, já estou com o dito cujo aqui em casa e esperando the right moment pra ler. <3 Acredito que seja um livro ótimo e já sou apaixonada pela frase que ilustra esse post. E, realmente, no fundo, as pessoas só são pessoas e as vezes a gente projeta tantas coisas nelas que o que nos resta é a decepção.

    Depois te conto minha experiência de leitura, Annoca!

    Beijos :)

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  3. Tchê, mas tu tem mesmo o dom, hein? Não li nenhum dos livros mencionados, mas sou obrigado a admitir que fiquei imensamente curioso e vou atrás das duas leituras... belíssima resenha!

    Ah, e agora eu que agradeço pelo qualificado comentário em meu humilde bloguinho. =)

    Beijo!

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  4. Os personagens secundários desse livro são realmente fantásticos! Gostei bastante da história, mas sabe, dei 3 estrelas porque meu ódio pela Margo foi absoluto. Acho que ela é uma rebelde sem causa hipócrita, que fica querendo sumir das pessoas porque elas são planas, enquanto pra mim ela é a mais plana que não pensa em ninguém e se acha superior a todos pelo fato de se incluir na categoria de pessoas problemáticas. Ui. ODEIO essa menina. ODEIO. Gracias a John existem Quentin, Lacey, Ben e Radar, que, AIN <3

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  5. Nunca li nenhum dos livros mencionados e me sinto extremamente mal por isso, já que tudo que você escreveu só me faz pensar no tempo em que estou perdendo por não conhecer essas obras que parecem incríveis.
    Seu texto é sensacional, parabéns!

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  6. Post perfeito! e não era preciso mais nada para me deixar doida para ler esse livro ( pq já estava assim muito antes) mas isso me deixou totalmente desesperada como se minha vida dependesse disso!

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