Ou: Ode à Vinícius de Moraes
Não sei ler poesia. Não consigo sentar na varanda (porque quando penso em poesia penso em uma figura leve e tranquila sentada em uma varanda com um livro aberto no colo, como se fosse ela mesma saída de um poema) e ler três ou trinta versos. Quer dizer, até consigo, mas não consigo aquela iluminação poética que só quem sabe ler poesia consegue atingir. É por isso que eu gostava tanto das aulas de literatura na escola e ficava tão feliz quando era época de poesia, porque quando o professor segurava na nossa mão e entregava a iluminação poética ali no quadro, aquela que eu não consigo alcançar sozinha, eu podia flutuar naqueles versos, mesmo que segurando firme na cintura dos professores, como se estivesse na garupa de um moto-táxi ao meio-dia de uma segunda feira.
Mas eu sempre li Vinícius. Com um livro dele no colo, aquele velho, surrado, mofado e rasgado de 1978 que eu roubei da minha avó, era como se eu estivesse não em uma varanda olhando o céu com ele graciosamente pousado no colo, mas sim numa esteira de vime sentindo preguiça no corpo em uma tarde em Itapuã. E mesmo sem eu entender direito a gente se entendia como numa simbiose maluca de almas, e talvez por isso, em uma aula inteira de literatura dedicada ao Soneto da Simplicidade, eu tenha dessa vez flutuado sozinha nas palavras, porque o professor me entregou de mão beijada de novo a iluminação poética, mas ela já era tão minha que eu não precisava sentar na garupa.
Mas o Manuel Bandeira sempre foi meu poeta favorito, porque fazia todo sentido do mundo ele sê-lo. Minha avó lia Manuel Bandeira pra mim quando eu ainda nem sabia ler, e nos almoços de família todo mundo me pedia pra eu recitar Neologismo e Trem de Ferro e certamente existe por aí alguma gravação perdida de uma Anna Vitória de quatro anos declamando te adoro, Teodora por aí, rindo horrores do trocadilho, sem fazer a menor ideia do que todas aquelas palavras significavam. Mas, com o tempo, aqueles versos fizeram mais e mais sentido, assim como todos os outros carregados daquela melancolia contemplativa que eu sempre gostei tanto e que a cada ano que passa eu tenho gravada em mim com mais intensidade. Bandeirinha, o tuberculoso que sabia que a morte estava sempre à espreita, tão ciente da finitude de todas as coisas, que escreveu que a vida às vezes era boa e bem por isso era também cruel. Eu não precisei saber de poesia pra amar o Manuel Bandeira porque ele foi o poeta da minha alma.
Mas o copo nem sempre está meio vazio, e por isso os versos de Vinícius são como uma janela aberta num quarto todo cinza, uma flor nascendo na calçada de uma cidade feia, o infinito de nossa vidinha em dias numerados. Vinícius amava sem medida nos versos e na vida, casou sei lá quantas vezes, quebrou a cara ouras tantas e nos incentivava a morrer de amor sempre que for possível. Defendia os namorados públicos e dizia que eles deviam ser patrimônios de qualquer cidade, confiava no uísque a ponto de chamá-lo de cachorro engarrafado e preferia morrer do coração a passar uma vida comendo alfaces em vão. O tal eterno enquanto dure que todo mundo adora usar pra falar de amor serve de lema pra uma vida inteira, um estímulo pra cair de cara, boca e pular de barriga na existência, porque excessivamente grave é a Vida. Vinícius é o Poetinha do meu coração.
Mas como não consigo ser só cinza fria ou eterna enquanto dure, resolvi que tenho quatro ventrículos dois ventrículos e dois átrios (obrigada, Mayra, que bom que eu não faço nada na área de saúde!) em bom estado no meu coração e posso muito bem dividir um pra cada um, porque eu não sei ler poesia mas esses dois me ensinaram a ver a vida de forma poética. Tenho três livros de poemas aqui em casa, um do Bandeirinha, um do Vinícius e um de uma autora polonesa cujo nome não sei escrever, que eu ganhei de presente e ouvi que ele era inteirinho eu. Não tive coragem de ler e pelo mesmo motivo venho evitando a poeta da vida da Analu, que ela me recomenda umas três vezes por semana, tudo isso porque não sei ler poesia e já acho que tive sorte demais ao encontrar esses dois senhores que me ajudam quando a vida não basta.
Mas hoje o dia é só do Vinícius e é do lado dele que o coração tem que bater mais forte, cem anos não é pouca coisa, principalmente pra quem que vivia e escrevia como se sempre fosse o último no sentido mais ensolarado e cheio de redenção possível. Bandeirinha me ajuda a viver com os pés flutuando no abismo e Vinícius planta flores ao redor dele. Eu acredito em Deus, e a forma que olho pra Ele tem muito da união entre essas duas coisas, mas sei que se não acreditasse era pra Vinícius que eu acenderia uma vela.
Parabéns, meu Poetinha, um abraço e um cheiro pra você.
Você é tão esperta que já sabia que eu passaria o texto inteiro pensando que ia vir cobrar nos comentários que você ainda não deu atenção pra minha Florbelinha. Quer um consolo, amiga? Eu não faço ideia de como se lê poesia, e dizia que infelizmente as odiava, até pegar Florbela. Sério. Ela é tão doloridamente linda que eu entendi. Entendi que quem só noites viveu não tem como saber cantar auroras, sabe? Então.
ResponderExcluirDepois de Flor me animei e achei que conseguiria ler tudo. Não consegui. To há quase 1 ano enrolada no Drummond (o poeta de Mimi!) e não consigo me desencalhar. E tentei Vinícius e parei no primeiro poema. O que não me impede de ser ~eticamente poser~ e ter o soneto da fidelidade estampado na porta do meu quarto, né. E que seja eterno enquanto dure!
Acho lindo cada uma de nós ter um poeta! Ando morrendo de vontade de desbravar Neruda e Bandeira! E eu ainda te farei engolir Flor. Se você não conseguir, tudo bem. Mas tente, vai!
Vinícius é tão leve, sincero e fantástico que é impossível não amar. As músicas, os poemas que ele recita no nosso ouvidinho em fones de ouvido quaisquer... Vinícius... Meu primeiro contato foi aos onze anos, quando fui ver um documentário sobre ele e DORMI porque não tava legal. Revi o documentário anos depois e acho absurdamente fantástico, ele é maravilhoso. E a sensação que ele transmite é de paz, de chiadinho bossa-noviano, de esperança no universo... Vinícius é puro amor.
ResponderExcluirMas eu queria te dizer que você não tem quatro ventrículos, querida. Você tem dois ventrículos e dois átrios, o máximo que dá pra fazer é deixar um de cada pra cada um dos seus poetinhas preferidos!
Abraços!
Sempre tive essa mesma sensação de que não sei ler poesia, até eu descobrir que não existe um jeito de se ler poesia. Cada um ler de um jeito, o importante é absorver as palavras. A propósito que ótimo gosto por poetas, Manuel é muito especial também.
ResponderExcluirQue texto lindo, Anna! <3
ResponderExcluirEu sou uma negação para poesia também, mas quando mais nova, eu adorava. Não sei por que perdi o jeito, ou o entusiasmo. Acho que foi a vida e os (des)amores.
:*
Coisa linda de se ler essa sua ode, Anna! Como sempre, me identifiquei bastante. Também não sei ler poesia, adorava as aulas de literatura sobre poemas por causa disso, e meu poeta favorito é Bandeira. Também amo Vinícius, principalmente seus poucos versos intrometidos em músicas de Chico, Tom e Toquinho, que mesmo tão poucos, fazem toda a diferença nas canções. :)
ResponderExcluirEstou aqui me sentindo deveras chateada por não ter um poeta pra chamar de meu, mas acho que tudo bem se eu dividir Vinícius com você? Ele com certeza não se importaria, e nesse coração enorme que fez 100 anos deve caber mais uma. Amo muito o Poetinha, sempre amei, e posso dizer que só sabe o que é amor quem quer morar-te até morrer-te.
ResponderExcluirE nem falemos dos versos declamados do meu cd, né? Por favor. Isso é segredo! Aliás, vou mandar esse post pra MB, ele precisa ver como a dama do nosso casamento é genial.
Beijo!
Anna, que lindo! Vinícius é apaixonante e acho que justamente a simplicidade e a leveza dele é que conquistam até "quem não sabe ler poesia". Minha professora era apaixonada por Quintana, e é óbvio que transferiu esse amor pra mim porque ela era uma daquelas professoras-heroína que a gente tem vontade de colocar no bolso e levar pra vida toda.
ResponderExcluirMas mesmo sendo apaixonada por outros maravilhosos poetas como Quintana, Drummond e Bandeira, o amor por Vinícius é algo que, como você disse, com certeza bate mais forte nesse centenário que eu ficaria muito mais feliz se fosse comemorado com o poetinha vivinho da silva! Não dá pra ter tudo.
Beijoca <3
Oi, Anna!
ResponderExcluirAdorei seu texto e tenho certeza que se o Poetinha do nosso coração lesse, ele também iria apreciar. Concordo contigo quando diz que Vinícius amava sem medida nos versos e na vida e acho que essa é uma das coisas que mais admiro no que diz respeito à vida pessoal dele.
Parabéns pelo texto novamente!
Abraços.
Comecei a ler, não só Vinicius, como tudo, depois de bem velho... E fiquei tão bestamente apaixonado, que assim que terminei de ler meu primeiro e único livro dele, tentei inutilmente escrever sonetos, e descobri, amargamente como é difícil. Sei que se eu for atrás, vou me perder mais ainda, mas prefiro me guardar pra alguns Nerudas, uns Drummonds e até uns Pessoas.
ResponderExcluirPs: Digno de uma dama, que venha a análise das outras. hdauihsduiahsuidahsd
Ps²: Causando intriga na máfia em 3... 2...
Você é sensacional e eu sou sua fã. Não me canso de dizer. Amei demais demais esse texto, amiga. E quem não ama Vinicius, não é? Acho que não tenho um poeta/compositor pelo qual eu tenha um afeto tão forte. Gosto muito, muito de alguns. Mas acho que não assim. Lindo, amiga.
ResponderExcluirLindo texto em homenagem ao Vinícius!
ResponderExcluirjj-jovemjornalista.com