...minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Sentou-se à sombra daquela árvore imediatamente, fechou os olhos. Então era assim, doía desse jeito. Que lhe desculpasse Camões, mas ele só poderia estar sob efeito de morfina para vir a escrever que o amor desatina sem doer. Ou ele pode então nunca ter quebrado a cara, o que é pouco provável, já que falta ao coitado um dos olhos.
e o sentimento do mundo...
É; os olhos dele nada tinham de especiais, recordava-se ela agora. Eram meio castanhos, meio negros, meio cor de coisa alguma, meio só aquele brilho de admiração que ela flagrava ao vê-lo contemplá-la e contemplar qualquer coisa que lhe fazia feliz naquela vida. Brilhavam-lhe seus olhos ao ver aquele parque, e aquela grama, e aquela árvore. Toda a poeira levantada em agosto que embaçava o azul do céu. “É lindo”, dizia ele, “essa poeira tá levando pro céu isso que a gente tá vivendo agora. Pro céu, pra sempre” ele sorria, ela corava. “Deixa que ela leve pro céu um beijo nosso” e encostou-a na árvore, beijou-lhe terna e avidamente. Os dois juntos marcaram seus nomes na árvore. O beijo estava no céu, e o momento gravado pra sempre na terra.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
A grandiosidade de tudo aquilo, no dado momento, a amedrontou. Sentiu o coração dele pulsar em suas mãos, o medo lhe apoderou. E se ela fizesse algo errado? E se estragasse tudo? E se o fizesse contrariar Camões ao provocar-lhe uma dor desatinando dolorida? Concordava com Drummond, era só uma garota com dois braços e um sentimento do mundo, mas tinha medo. Jogou isso pro alto, jogou ele pro alto e correu. Correu até agora, correu em círculos e, alguns anos depois, fora parar no mesmo parque, sob o quase o mesmo céu de agosto e as lágrimas quentes e salgadas que lhe escorriam dos olhos à medida que passava os dedos sobre aqueles nomes em baixo relevo no tronco das árvores, molhavam o tronco e molhavam a grama e o sol faria o trabalho de lhes absorver para levar pro céu, junto com a poeira, para se juntar às outras coisas suas levadas pro céu e terminar de escrever sua história. Ela só queria lhe pedir desculpas.
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer.
Pois ainda era tempo de resolver alguma coisa, a cidade era pequena e não é possível que ele tenha ido muito longe. Tinha modos de que era moço que até se casar moraria sempre na barra da família, talvez a boa dona mãe dele ainda lhe guardasse alguma recordação. Tomariam um chá juntas, e a mãe então lhe contaria dos rumos da vida do filho, o emprego bom que arrumara, ele logo bateria a porta e entraria na sala, a gravata afrouxada e a pasta de couro preta embaixo dos braços. Era assim que ele lhe descrevia o próprio futuro. A noite havia caído, o negrume tomou conta do céu, e as estrelas começavam a então, brilharem tímidas ali. E aquele monte de poeira. Não era o que diziam, não éramos todos poeira das estrelas? Houve nela um dia algo que como poeira, fê-la embaçar a vista para aquilo que então lhe era óbvio, e havia nela agora um algo que brilhava dentro de si, mostrando-lhe o caminho certo. Como se tudo aquilo que era dela, e era dele, e era dos dois, que fora carregado pro céu, lhe mostrava que chegara a hora de brilhar. Finalmente.
...esse amanhecer
mais noite que a noite.
Não era assim tão tarde, talvez lhe recebessem para o jantar.
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