Ou: O gosto do cheiro
A primeira e única vez que vi Júlia aqui no prédio foi na semana na qual ela se mudou para cá e bateu na porta de casa perguntando se eu sabia onde o síndico morava. Como também havia me mudado há pouco tempo, não sabia lhe informar e realmente senti muito: ela estava desesperada porque precisava colocar para assar uma fornada de pães doces e não havia gás em seu apartamento. Minha mãe apareceu e chutou o número da porta onde ela achava que podia morar o síndico, e Júlia, satisfeita, foi embora.
Algumas horas depois ela bateu aqui em casa com uma vasilha cheia de pães doces, como um agradecimento pela ajuda que havíamos lhe dado mais cedo. O síndico realmente morava no apartamento que minha mãe sugeriu e, falando com ele, ela resolveu o problema do gás e pôs seus pães no forno. Eles estavam agora numa tupperware verde, na mesa de casa.
Foram os melhores pães doces que já comi na vida. Macios e cheirosos, lindos de morrer, ficaram perfeitos com muito requeijão e uma caneca de café. Quando era mais nova, tive uma amiga cuja cozinheira sempre fazia pães doces quando eu ia passar a tarde de sábado na casa dela brincando, e nós duas nos empanturrávamos daquelas coisas lindas enquanto assistíamos Crossroads. Ah, os pequenos prazeres da boa vizinhança e a nostalgia palatável que certos quitutes suscitam!
Nunca mais vi Júlia e poderia acreditar que ela havia se mudado não fosse por dois detalhes: o primeiro é que, não sei como, minha mãe sempre tem notícias dela. Um dia chegou aqui contando que ela havia se separado do marido e tinha engordado muito. Fiquei imaginando a pobre Júlia curtindo a fossa enquanto se enchia dos seus pães doces maravilhosos e lembrei da Izzie, de Grey’s Anatomy, que passava o dia assando muffins para superar o luto. Minha mãe disse também que achava que ela trabalhava com comida, pois estava sempre cozinhando, e esse é o segundo detalhe que me deixa ciente de que ela nunca saiu daqui: o cheiro das coisas que ela cozinha.
Quase todos os dias, no fim da tarde, naquela hora em que bate a larica do pôr-do-sol em que a gente morre de vontade de comer uma-coisa-boa-que-não-sabe-o-que-é, um cheiro de coisas gostosas assando invade o prédio e todo o meu apartamento. Alguns dias é cheiro de bolo, mas na maioria deles é de pão doce. Aquele pão doce. E eu fico aqui, flutuando no aroma como um personagem glutão de desenho animado, quase abocanhando o ar na esperança de que haver ali o gosto do cheiro que exalam os pães. Incontáveis vezes já vasculhei pelas padarias da vizinhança algo que tivesse o gosto daquilo que eu tanto desejava, mas nem os pães mais bonitos, as roscas mais cheirosas, os bolos mais macios, nenhum deles tinha o gosto do cheiro das coisas que Júlia fazia. Pus na cabeça que aprenderia a fazer pães doces e que compraria a máquina de pão da Polishop.
Até que um dia desses minha mãe passou numa padaria que fica longe de casa, famosa por seus pães de queijo divinos e pamonhas, que não serão adjetivadas porque não gosto delas; além do pão de queijo, das pamonhas, broas e rosca, mamãe trouxe um pacote de pães. Pães doces. Não dei atenção a eles pois estava cansada de imaginar que poderia existir algo que se equiparasse aos pães da Júlia e me decepcionar depois, mas numa bela manhã, na falta de outra coisa para comer, peguei dois deles para comer no café da manhã. Lágrimas vieram aos meus olhos: foi como se eu finalmente tivesse conseguido abocanhar o ar e sentido o gosto do cheiro que invadia minha casa sem pedir licença todo fim de tarde. Foi como voltar àquela tarde em que Júlia bateu aqui com sua tupperware verde e quis ser boa vizinha, e foi como se minha amiga estivesse me esperando na sala de tv para que cantássemos If It Makes You Happy junto ao filme. Descobri – ou melhor, minha mãe descobriu – uma fonte inesgotável de pães doces, e agora eu não teria mais aquele buraco negro no meu estômago que só queria mais um daqueles pães da Júlia.
E a Júlia, por falar nisso, tem cozinhado muito menos ultimamente. Minha mãe encontrou com ela no elevador esses dias e me contou que ela emagreceu muito e está toda bonita. Engraçado que penso muito nela e acho que nem lembro a cara que ela tem. Só sei que se parece muito com uma prima da minha mãe, e, agora, sempre que penso na Júlia a enxergo com a cara da prima. Juro que tenho vontade de descobrir onde ela mora porque tenho vontade de sentar pra falar com ela, tomar café e ouvir a história do fim do casamento que a fez engordar como uma pipa e que guinada radical foi essa que a fez largar os pães e doces e entrar em forma.
Perguntaria também a receita dos tais pães e o segredo para cheirarem tão bem, porque confesso que ainda não tirei da cabeça a ideia de fazê-los também.
* Depois de escrever esse post, fui procurar uma imagem ilustrativa e me deparei com uma foto tão grotesca dos pães que deixou minha nuca arrepiada de horror. Aconselho aos tripofóbicos amantes de pães que se quiserem continuar comendo e amando, não abram a imagem.
Adorei! Eu também vivo querendo comer o cheiro das coisas. Fico frustrada quanto o gosto não é tão bom quanto o cheiro. Me dá vontade de comer O CHEIRO.
ResponderExcluirBeijos!
PQP, Anna! Pra que eu fui pesquisar sobre tripofobia? Quer dizer então que você descobriu o nome dessa nossa fobia. Não sei se fico contente ou se me arrepio até morrer. Jesus tem poder! ARGH!!
ResponderExcluirEnfim (vou tentar esquecer).
Se eu fosse você, tentava puxar assunto quando encontrasse a Júlia por aí, no seu condomínio! E vou te contar: fiquei com água na boca só de ler sobre esses pães doces. Seria o gosto da imaginação?
Agora mesmo eu fui no quintal da minha casa e senti o cheiro de bife acebolado. Nossa senhora da comida, quase morri de fome com esse cheiro. Descobri que a fonte era a casa da minha irmã! Fui até lá para descobrir que era só bife normal, sem cebolas. Fiquei decepcionada. :(( Queria o gosto do cheiro. :(
ResponderExcluirAnna Vitória querida, você tem o dom de ser engraçada sabia? É raro alguém conseguir me fazer rir de verdade com textos e isso sempre acontece por aqui.
ResponderExcluirQue tortura deve ser ter uma Júlia assando pães doces deliciosos toda tarde. Lembrei do colégio, tinha uma esfiharia ali perto e qdo eu ficava pra fazer aula de dança subia um cheiro tão maravilhososoooo! rs..
Beijos
SHAUSAHUHUASHASUHUASUASHSHU morri com o final! Sério, eu já passei por isso. Sempre vou para o interior e a vizinha da minha chácara cozinha MUITA coisa gostosa e sempre dá um pouco para minha família. Te juro, nunca comi uma torta de frango tão gostosa! E sempre que tento comer alguma de padaria/supermercado, nem de longe é bom igual ao dela.
ResponderExcluirhahaha Muito bom! Você tem mesmo o dom de transformar fatos triviais em grandes posts!
ResponderExcluirEngraçado que, no começo, meio incerto se era um relato verídico ou ficcional, eu cogitei que o narrador fosse masculino e imaginei que ele e a vizinha protagonizariam um romance no final, por culpa dos pães doces claro... :)
PS: Tupperware é uma palavra muito estranha de se ver escrita (já a que gente pronuncia tão diferente)
PS²: Eu ri dos pães-mórulas e do alerta ao tripofóbicos haushausa
Júlia, um exemplo de superação. Separa, engorda, emagrece e fica linda, sabe cozinhar.
ResponderExcluirMinha vizinha de baixo cozinha o dia inteiro para os meninos dela, cozinha d-e-m-a-i-s.
Coxinha, pipoca, frango assado, miojo, batata frita, bolo... Tudo isso em um dia.
vê se encontra ela, conversa, compartilha toda a sua admiração e depois conta pra nós o segredo, hahaha
ResponderExcluirteus textos se superam a cada dia, queria escrever igual você, juro! rsrs
hahahahaha adorei! são duas e meia da manhã e eu lendo esse post morrendo de fome, e fiquei com desejo de comer um pão doce. como eu já sou viciada em pão né, se você fosse minha vizinha ia sempre ganhar pão doce e pão caseiro que minha mãe faz, porque ela dá pra todo mundo no prédio rs. nem vou correr o risco de clicar no link da imagem porque sou apaixonada por pão, uma das coisas que mais gosto de comer, e não quero que essa paixão acabe rs. beijo!
ResponderExcluirSeu texto ficou tão bom, que tenho certeza que o elogio que farei te fará ficar saltitante. Seu texto poderia ser muito bem do Antonio Prata. Está a mesma pegada dele. É um elogio sincero. Amei seu texto e deu vontade de comer esse pão doce, apesar de eu não gostar de pães doces. Mas vai que o da Júlia eu goste. hahaha
ResponderExcluirSe meu olfato fosse bom com certeza eu passaria muito por isso. Minha cunhada cozinha deliciosamente bem e o que me impede de ficar ingerindo tudo o que ela faz é a minha rinite que prejudica meu olfato. Mas eu sei como é isso. O gosto do cheiro é incrível mesmo. É uma sensação que não tem explicação suficiente.
ResponderExcluirEu fiquei com vontade de visitar essa sua vizinha e pedir umas receitas, huh? haha