sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A turma do bairro

Dizem que o cachorro é a cara do dono. O fotógrafo Sebastian Magnani levou essa ideia tão a sério que produziu uma série de foto-montagens colocando a cara dos cachorros no corpo de seus donos, e o resultado é bem impressionante. Mas não é disso que estou falando. Quem tem um bichinho sabe que eles funcionam como um espelho da casa em que vivem. Não sei até que ponto essa sintonia é condicionada pela convivência ou se alguns cães estão destinados a ser nossos. Normalmente eu acreditaria que é tudo culpa da convivência, mas Chico, o poodle, criou um laço tão absurdo e imediato comigo e com a minha mãe que o veterinário que o resgatou disse que algumas pessoas já tinham tentado adotá-lo, mas ele não topou porque acredita que o cachorro tem que dar a liga com seus donos. Francisco deu liga com a gente. 

Piche, o cachorro da minha avó, é transtornado, inquieto e afobado. Minha avó parece ter formiga na calcinha. Chico, o poodle, por sua vez, consegue dormir vinte horas seguidas se eu e minha mãe decidirmos que não vamos nos levantar por vinte horas seguidas. Minha casa é quieta e silenciosa, a gente dorme e lê bastante, odiamos telefone e quase não recebemos visitas. Chico é um cão tranquilo, mole e anti-social. 

Meu quarteirão tem um monte de cachorros, meu prédio tem um monte de cachorros, de modo que é praticamente impossível andar pela rua sem topar com no mínimo uns três quadrúpedes acompanhados de seus humanos. Entre as cinco e seis da tarde temos a hora dos cães que, como num passeio público, desfilam, cheiram os arredores, fazem suas necessidades e reconhecem seus companheiros. 

Shamu é a rainha do bairro, uma shih-tzu branca com cinza que mora no quarto andar do prédio. Sua dona passeia com ela três vezes por dia e ela galga essa rua de paralelepípedo como se fosse a estrada de tijolos amarelos do seu reino. Shamu não gosta do Chico e sempre rosna para ele quando nos encontramos no elevador, e sua dona jura que ela só faz isso para ele, que, por sua vez, sabe até quando ela desce de elevador pra passear. Quando vejo ele cheirando a porta da frente e bufando, posso ir para a sacada que sei que verei Shamu em seu passeio real. Há poucos meses ela ganhou um irmão, Bidu, um shih-tzu branco com marrom, e agora passeiam os dois, um atrás do outro, como herdeiros do trono que acreditam ser. 

Temos Fred, o poodle marrom bazé da casa da frente, que sempre late quando Chico passa em frente ao seu portão. Evito a calçada dele porque sei que perderei bons minutos ouvindo um uivar para o outro. Poodles. Temos também Caterine, a poodle cinza, que conheceu Chico num dia que os dois ficaram estacionados na porta da padaria esperando seus humanos saírem com pães quentes. A dona dela, uma senhora de cara boa, toda espigadinha, que alimenta uns gatos que ficam num terreno baldio aqui perto, disse que ela sempre estica o pescoço quando Chico passa, e completou dizendo que estava passando da hora deles se conhecerem. Meg, a pug, é caso antigo, e o encontro amoroso dela com Francisco já virou post aqui antes. Por fim temos a Sol, a cocker, que se mudou pro prédio há pouco tempo. Ela fugiu na mudança e causou tanta balbúrdia por aqui que agora a síndica fiscaliza e aplica multa para quem deixar o cachorro circular na área comum do condomínio sem estar no colo ou "em cesto apropriado", como diz a circular colada no elevador.

Quando Chico chegou em casa ele dava o maior trabalho para passear, ficava muito inquieto, tentava fugir e, quando via outro cachorro, sempre perdia as estribeiras.  Resumindo: não sabia se comportar e agir fora de casa e com seus semelhantes. Por isso, acostumei a levá-lo para passear mais tarde, quando os outros cães já tivessem cansado da cara e do rabo uns dos outros, e então tínhamos o quarteirão inteiro pra gente - e era fácil dar meia volta caso avistássemos algum cachorro. Hoje ele já se acostumou com o movimento e com seus pares, mas o hábito de sair só depois que todos já foram embora ficou.

Essa semana, enquanto voltava da faculdade, me deparei com uma cena inusitada: Shamu, Bidu e Sol passeavam junto com um vira-latinha lindo ao qual ainda não fui apresentada. Cumprimentei minhas vizinhas e ainda brinquei com elas: ué, tá rolando uma festa hoje? A dona da Shamu e do Bidu contou que de tanto se encontrar todos os dias na calçada e nas esquinas os cães acabaram ficando companheiros, e as donas, comadres. A farra tem rolado há algumas semanas e voltei pra casa toda ressentida. Ninguém chamou o Chico pra festa.

De repente, tudo fazia sentido: minha rua é um filme colegial americano. Chico é o loser excluído sem traquejo social, a adorável figura do wallflower. Shamu é a rainha do baile por quem ele é perdidamente apaixonado e que o esnoba sistematicamente. Bidu é o caçula que vive na sombra da irmã. Caterine é a outra loser excluída que quer unir sua solidão com a de Chico, que só quer saber da homecoming queen. Meg é a garota prafrentex, Fred o garoto do fundo da sala que come cola e a Sol, minha gente, é a típica loira burra. Se eles fossem humanos e estudassem na mesma escola, o yearbook seria mais ou menos assim:

SHAMU


CATERINE


MEG


SOL


CHICO


Não me surpreendi quando tive a epifania de que Chico é o Charlie, e que ele não foi convidado para a festa. Dizem que o cachorro é a cara do dono. 

10 comentários:

  1. QUE TEXTO GENIAL, SOCORRO!
    Se fosse um filme, por mais absurdamente sessão da tarde, com todos os cachorros falando, eu veria. E com certeza morreria de rir.
    Se já amava Francisco antes, imagina agora na versão Charlie? Imagina o quanto Chicolinhos é sensível e compreensivo? Imagina as mixtapes que o Chico gostaria de fazer mas não pode...
    Você é um gênio. #novidades
    Beijo! <3

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  2. Ah que bacana seu texto!
    Muito criativo e daria um filme mesmo rs.

    Gostei de seu blog, moro em Uberlândia também.

    Beijos!

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  3. AHHAHAHA, quando eu acho que você já chegou no ápice de sua genialidade você me aparece com um texto desses! Se estivesse Kimmy envolvida nessa palhaçada, ela seria a rainha diva e desbancaria Shamu. Kimmy é superior, ela é quase um ser humano. Quando os cachorros do meu antigo prédio resolviam ir todos pras suas respectivas sacadas latir, Kimmy ia pra nossa sacada e ficava olhando pra todos eles com a maior cara de: "Gente, sério, qual e a real necessidade disso?". Aposto que ela se daria muito bem com Chico. Os dois passariam horas dormindo juntos. <3

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  4. Eu que nem sou fã de cachorros, senti uma ponta de inveja, porque nunca tive essa relação, adorei sua definições. Já estou compartilhando com as amigas que amam cachorros.

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  5. Absurdamente amei esse texto. E olha que eu detesto cachorros, mas consegui imaginar todas as cenas e achei fantástica essa sua comparação deles com gente do ensino médio! Sem contar que já tinha visto as fotos que esse fotógrafo fez e acho absurdamente genial a ideia e a maneira como na prática ela realmente demonstra-se verdadeira! Sensacional!
    Abraços!

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  6. Adorei hahaha! Todo mundo diz isso que o cachorro é um espelho do dono, se for isso eu e minhas irmãs estamos perdidas. A nossa cachorrinha Lola (uma poodle também) era tipo o Marley sabe? Juro por Deus! Era cada vergonha que a gente passava, ela era muito bagunceira, latia até pra um fio de cabelo caindo no chão, mas era um amor. Depois que ela foi embora deu até saudade da bagunça rs. Acho que se ela fosse um personagem, seria essas estudantes mais maluquinhas que ou são totalmente amadas ou totalmente odiadas.
    Beijos

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  7. Caramba Anna!
    Que sensacional esta sua mente pra criar um texto como este!
    Não sei bem onde meu shih-tzu Macgyver se encaixaria, sei que dormiria 20 em solidariedade ao Chico também!
    Acho que ele é meio Charlie também! Apesar de adorar uma visita em casa e fazer graça e malabarismos!

    Muito bom, e cara, imaginei a Shamu exatamente assim. hahahaha

    Beijão.

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  8. Amei o comentário da Milena, e se esse post virasse sessão da tarde, eu também assistiria e acabaria morrendo de rir.
    Estou até agora tentando encaixar Francisco Ataulfo nessa hierarquia: acho que ele seria tipo o irmão mais velho que já está na faculdade, que não tem traquejo social algum e prefere ficar sozinho em casa a ter que lidar com outros cães. Tipo um Sheldon Cooper, mas sem tanta ansiedade, com uma veia mais artística do que para a ciência. Enfim, Tatau era indefinível.

    Concordo que a Kimmy desbancaria Regina Shamu George!
    E me pergunto onde estaria Dindi nessa história toda. Acho que aquela menina da banda de bom coração, que só quer ser amiga de todo mundo, mas que todo mundo tem um pouco de medo dela porque ela não tem focinho.

    Post genial, para variar, né?

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  9. Hahahahahaha
    Genial, Anna!
    Estou aqui pensando que personagem Enriqueta seria. Que ela é parecidíssima comigo, todo mundo sabe, uma jovem idosa que adora ficar no quarto. Hahaha

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