Minha resposta automática, mas nem por isso menos verdadeira, sempre que me perguntam o que me levou ao Jornalismo é: gosto de pessoas e histórias, portanto estou nesse porque quero conhecer pessoas, ouvir histórias e contar histórias. Sabemos todos que na prática não é tão lindo como a gente idealiza, que o mundo é um moinho, etc e tal, mas antes que o mercado triture meus sonhos e reduza a pó todas as minhas ilusões, tenho a chance de viver esse sonho dourado, essa lua de mel chamada universidade.
Quando a gente entra é aquela coisa, você quer escrever uma história de três páginas estilo Piauí mas acaba cobrindo uma nota de menos de 500 caracteres sobre algum evento flopado do seu curso. O universo que você pode pesquisar pautas é a sua faculdade e todo mundo escreve basicamente a mesma coisa, usando como fonte a coordenadora do curso, um professor envolvido em pesquisa e aquele mesmo aluno que participa de tudo e gosta de falar. No outro semestre você tem a chance de expandir um pouquinho esse universo, conhece coisas de outros cursos, entrevista alguém de fora por telefone, tem a chance de extrapolar uma lauda. Mas no fim das contas é aquele texto engessado e rotineiro cuja estrutura já está pronta na sua cabeça, basta mudar as variáveis. Você pensa naquele ideal de sair desbravando as ruas com um bloco na mão e uma ideia na cabeça e termina cobrindo aquela semana acadêmica que só faz ocupar as noites de uma semana inteira.
E então chega o terceiro período que te promete aquilo que você quis a vida inteira. Liberdade de criação, oportunidade de desbravar as ruas, muitas ideias na cabeça, pessoas para conhecer, histórias para ouvir, a responsabilidade de uma grande reportagem nas costas e sua professora indicando Talese e Capote como inspiração. O sonho que, na verdade, quando visto de perto, está mais para o horror, o horror. Apelidei a disciplina de úlcera do semestre, pois preciso, além de produzir uma fotorreportagem, parir relatórios quinzenais sobre todo o processo. Além disso, em outra matéria adjacente, a responsabilidade da grande reportagem sobre o mesmo tema daquela em fotos, com perspectiva de escrever umas dez laudas, no mínimo. Total liberdade, o que sempre sonhei, a história enorme com jeitão de Piauí que me levou pro curso, e a única coisa que conseguia sentir era pânico. De repente, o texto pronto, engessado e engomado com as variáveis prontas para ser trocadas não me parecia tão má ideia.
A história que eu e meu grupo vamos contar é sobre uma instituição que atende moradores de rua. Além das pastorais que distribuem comida em becos, calçadas e portas de hospitais, a casa de acolhimento fraterno abriga alguns moradores em tempo integral, visando sua recuperação e reintegração social. Confesso que no começo morri de medo de me impressionar demais com o que veria, de não querer sair do quarto por dias. Mas eu fui mesmo assim. Passamos apenas duas tardes e uma noite por lá, mas já vi tanta gente, ouvi tantas histórias e conheci tantas pessoas incríveis que é como se estivesse com eles há anos. Vários deles estão lá há anos, alguns já ajudam como voluntários, uns não tem nome, documento ou história da qual se lembram, outros já viveram tanta coisa que seus depoimentos daria um livro incrível cheio de altos e baixos e reviravoltas surpreendentes. Ontem vi um morador de rua tocar violão, uma música sertaneja e outra cristã, e quando eu estava indo embora um deles beijou minha mão.
Cheguei em casa tão mexida que não consegui escrever. Eu tinha três horas para cumprir o prazo do desafio das crônicas, mas não queria dividir aquilo com ninguém, não naquela hora. Em "A dor não nos matará", Jonathan Franzen escreve que apesar de sempre ter se identificado com causas ambientalistas, ele odiava tanto e se sentia tão mal com tudo que era feito contra a natureza que resolveu parar de se preocupar, porque pelo menos não sofreria com aquilo. No entanto, anos depois, ele se apaixonou verdadeiramente por pássaros, passou a estudá-los, viajar para muito longe para observá-los e percebeu que ele não poderia simplesmente ficar parado. O amor verdadeiro que ele sente pelos animais fê-lo seguir em frente, engajar-se com fé em várias causas e foi aí que ele redescobriu o jornalismo, que antes o entediava porque a vida real era menos estimulante do que a ficção. Ele percebeu que podia confrontar a raiva e a desesperança e fazê-las um estímulo para o jornalismo que ele queria exercer, que ele poderia ir atrás e escrever. No final, ele completa: "Quando ficamos trancados em nossos quartos, bufando, caçoando, ou nos sentindo indiferentes, como fiz durante tantos anos, o mundo e seus problemas parecem desafios impossíveis. Mas quando saímos às ruas e temos relacionamentos reais com seres reais, ou mesmo animais reais, há o perigo bastante real de amarmos alguns deles. E então quem saberá dizer que rumo a vida tomará?"
Não sei Franzen, mas pelo menos saí do meu quarto e parei de bufar desejando fazer uma coisa mais fácil ou então passar a vida anestesiada com histórias insípidas e inodoras sobre pequenos acontecimentos em poucos caracteres. Ontem eu conheci pessoas, dessas que tenho certeza que o Markus Zusak pensou quando escreveu que às vezes as pessoas são bonitas, não pela aparência física, nem pelo que dizem, só pelo que são. Ontem eu ouvi histórias e percebi que contá-las é muito mais importante do que supunha minha vã filosofia de foca deslumbrada, e não vou me preocupar, ao menos não agora, com o moinho da vida e da realidade esmagador de sonhos e triturador de ilusões, porque experimentei pela primeira vez a razão que me levou pra esse curso e essa vida.
(E quem vier comentar amargamente sobre desilusões da vida, favor caçar o rumo de casa e deixar que nesse dia e nessa crônica eu viva meu sonho dourado)
Que delícia, amiga! Eu gosto muito de ler histórias sobre outras pessoas, mas ainda não sei se gosto de escrevê-las, sabe? Até porque, gosto de tanta liberdade, que essa semana ando afirmando algo que já estava ameaçando descobrir a algum tempo: Sou egocentrista e gosto mesmo é de falar do meu mundo. Se mando bem em crônicas ou não eu não faço a menor ideia, mas é o que eu mais gosto de escrever. Pena que ninguém começa na vida como cronista. Esse mundo é tão injusto. Quem me dera escrever como Antônio Prata, aquele muso... <3
ResponderExcluirQue incrível, Anna! Imagino como devem ter sido mágicas essas horas que você passou com esses moradores de rua. E acredito MUITO que eles tenham muitas histórias mesmo.
ResponderExcluirJornalismo é um curso incrível e por esse tipo de crônica, fico me perguntando o porquê de não ter feito também. <3 Contar histórias é demais!!!
Espero que eu tenha um insight desse quando visitar uma fábrica. HAHAHA.
Beijo :*
QUE TEXTO SENSACIONAL.
ResponderExcluirVocê SUPER tem que ver Gilmore Girls, porque sua visão de jornalismo me lembra muito a Rory e eu acho que você ia se identificar horrores com a série, de verdade. Essa parte de gostar de pessoas e de conhecer histórias e tal é bem o que a gente faz em antropologia e, é lindo, né? Fiquei muito encantada com o seu trabalho e acho que vai dar super certo e amei esse trecho do Frazen e morro de orgulho de você e tô surtandinho aqui <3
Sonhos dourados são mesmo para serem vividos!
ResponderExcluirO jornalismo agradece...
menina, eu faço parte de dois grupos de jornalistas no facebook - fui convidada por uns professores da faculdade, que nao se esqueceram de mim, apesar de centenas de anos terem se passado.
Me avisa se vc qusier participar, eu te convido.
Amiga, não se preocupe com as desilusões que trituram nossos sonhos porque elas fazem parte. Qual profissão você conhece que só tenha prós? Então. Mas falando do post, a primeira vez que senti que o jornalismo tinha sido a escolha correta foi ao escrever uma crônica - veja você - sobre a vida universitária. O jornal inteiro foi baseado nesse tema e lembro de ter me sentido completamente realizada e confortável escrevendo depois de tanto observar as histórias que eu via e vivia todos os dias. Eu costumo dizer que o cotidiano do jornalista é complicado, mas somos recompensados nas pequenas coisas, nos personagens inesquecíveis e na sensação de dever cumprido que certas matérias provocam. Essa experiência é só o início de um futuro brilhante. E eu mal posso esperar para ler sobre ele (por mais que demore parar mimar depois).
ResponderExcluirTe amo!
Ai, que lindo, Anninha. Admiro mito a sua profissão, de verdade; não é para qualquer um. Acredito que eu não teria fibra para isso.
ResponderExcluirO texto ficou lindo. Parabéns! Beijinhos,