sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Carolina

Parte 1

A aeromoça passava apressada ajeitando o lenço ao pescoço, mas a pressa não a impediu de, por um minuto, deter seu olhar na mulher sentada no chão, olhando pra lugar nenhum. Aquilo não agradou a moça distraída, não era um olhar de surpresa, espanto ou curiosidade, mas sim um olhar de reconhecimento. Ela não gostava de ser reconhecida, e nem que as pessoas flagrassem seus hábitos, o que poderia dar-lhes a falsa sensação de que a conheciam, e isso suscitava nela um profundo sentimento de que era ordinária e previsível, e isso lhe dava nos nervos. Almoçava sempre no mesmo restaurante pois não tinha escolha, mas raramente repetia o mesmo sabor de suco e muito menos a sobremesa, não suportava o olhar gentil dos garçons querendo adivinhar suas preferências. Esse mistério que ela mesma criava em torno de si lhe dava uma confortável idéia - ainda que vã - de que era misteriosa e indecifrável, e isso confortava-lhe deveras, pois fazia-a acreditar que era tão incompreensível aos olhos alheios por vontade própria. Se contou essa mentira por tantos anos que acabou por acreditar nela.

Tinha os olhos azuis, mas era um azul escondido. Desse que não se nota facilmente. O único namorado que tivera só percebera isso depois de três meses que estavam juntos, quando depois de um minucioso exame de seu rosto, pediu-lhe que tornasse a face na direção do sol. Exclamou que os olhos eram azuis como um arqueólogo que acaba de descobrir uma arca com jóias egípcias cravejadas das famosas pedras de lápis-lazúli. Naquela semana ela terminara com o namorado, porque ele, conhecendo seus olhos azuis, tirara-lhe todo o mistério, aquele era seu segredo, o brilho extraordinário que guardava pra si com as pálpebras rijas, impedindo o mundo de apreciar tão belo contraste do azul claríssimo com os cabelos pretos e a face alva. O namorado a cobrira de azul e ela sentia-se nua diante disso. Acabou com o namoro, e não namorou mais ninguém desde então, não queria que um enamorado apaixonado descobrisse seu segredo, e a descobrisse consequentemente.

Além do restaurante, o único hábito que cultivava era o de passear pelo aeroporto. Viajava pouquíssimo, e nunca estava lá para acompanhar ou receber ninguém, não tinha particular interesse pelas lojas de souvenir e menos ainda pelo café saído da máquina de espresso antiga da única cafeteria do local. Entretanto, pelo menos uma vez por semana estava lá, porque gostava das pessoas, as achava tão transparentes e óbvias que seu passatempo preferido era sentar-se em algum canto ou da sala de embarque, ou da sala de desembarque, observá-las e adivinhar suas vidas. Os homens apressados, entediados e preocupados, eram executivos, as mulheres pomposas e perfumosas, madames, os jovens animados e cheios de mochilas, aventureiros. Essa era a típica fauna dos aeroportos, nada tão extraordinário, pois não morava em uma cidade turística, mas essas eram suas companhias semanais em momentos de devaneios solitários. Sempre ao sair, escolhia a pessoa que achara mais interessante, e escrevia sobre ela. Criava sua vida, dava-lhe nome, casa, filhos e problemas, e pendurava o texto na parede. Deitava-se na cama e dormia, com todos aqueles estranhos adoravelmente previsíveis a velá-la direto do mural.

(continua)

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