quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Carolina

Parte 3
(parte 2)

Fazia mais frio que o normal naquele dia, e ela passou mais tempo na porta da sala de embarque, camuflada por um grande painel de recados instalado na entrada. Estava tão absorta na história que criaria para a pessoa escolhida que mal viu quando um homem sentou-se ao seu lado. Sem cerimônias, ele desatou a falar: "Então você gosta deles também, digo, das pessoas? São inspiradoras, e como. Eu venho aqui vez ou outra, sou escritor e quando a inspiração me foge, procuro-a aqui. Tantas emoções numa sala só, não acha? Gente feliz, gente triste, as pessoas disfarçam pouco por aqui". Foi pega de surpresa por um reconhecimento tão súbito, por alguém adivinhando suas atividades assim tão de repente, e acima de tudo, por saber que alguém também gostava de aeroportos, e via nas pessoas uma inspiração. "Não, não acho que as pessoas disfarçam, na verdade, acho todas óbvias demais, você não?" "De forma alguma, todos se escondem dentro de si, só mostram pro mundo aquilo que eles querem, e aqui não, a saudade, a felicidade, a tristeza de partir não pedem licença pra entrar. Alguns seguram, mas mesmo assim, denunciam-se na tentativa de conter aquilo que não se oprime. As pessoas deviam ser todas assim que nem você." "Como eu?" "É. Consigo ver-te inteira atrás desses seus olhos azuis, ainda não consegui ver porque você é tão triste, e porque você está aqui sozinha sendo assim tão bonita e aparentemente interessante; mas eu não sou tão bom assim com as pessoas." "Desculpe, mas é um engano. Eu não sou triste, e você não viu nada através dos meus olhos, que não são azuis. Com licença."

Levantou-se e saiu apressada, desviando com dificuldade das pessoas que passavam com pressa, enroscando o pé nas malas espalhadas pelo saguão. Ele não sabia de nada, ele não podia saber, ela era indecifrável e misteriosa, e de forma alguma era triste. Entrou no táxi, chorando copiosamente como há muito não fazia, como não fazia desde a vez que saíra desabalada em busca da vida, pra ver como eram as felizes pessoas que viviam. O taxista vez ou outra lançava um olhar de relance para trás, e ela já não mais se preocupava se ele a visse chorar tanto assim. Quem nunca chorou no banco de trás de um táxi definitivamente não sabe o que é sofrer. E naquele momento ela sofria, e por Deus, como doía aquilo que gritava dentro de si em alto e bom som, que ela pensava estar escondido tão bem escondido num canto escurto, que nunca mais viria à tona.

Ela demorara tanto para construir o muro em torno de si, e aquele homem, aquele homem atrevido, chegara pensando que podia pegar uma marreta e destruir tudo assim tão de repente. E ele notara seus olhos azuis. As pessoas tinham que estudá-la por um tempo para perceber as nuances anis saltando-lhe do orbe ocular branco. E ele vira assim tão fácil, e ele vira assim tão simples. Ainda lhe dissera que as pessoas disfarçam, que as pessoas mentem, que não são o que aparentam. E o que ela fazia agora com toda a transparência, todo o óbvio, todo aquele emaranhado adorável de atitudes previsíveis? Seus empregos, seus nomes, seus problemas, era tudo uma farsa? Dois anos perdidos supondo mentiras, achando que sabia de tudo enquanto não sabia de nada, regozijando-se por ser impenetrável enquanto era provavelmente a mais vulnerável que já andara por todo aquele aeroporto?

Entrou em casa, e aos tropeções retornou ao jardim. Estava todo florido, haviam lírios pomposos por todo o canto, e por quanto tempo? Alguns já ameaçavam deixar a vida, e ela nunca os notara ali, na frente de sua casa. O que mais havia perdido durante todo esse tempo que se encontrara sentada, circundada por um muro em cujas paredes ela pintara o mundo que julgava ver. Voltou para dentro de casa e arrancou das paredes todos os esboços de vidas que havia um dia criado, crendo ser verdade. Pegou enfim um papel, e para provar que todos aqueles anos não foram em vão, por uma última vez, pôs se a escrever sobre estranhos, pôs-se a escrever sobre o atrevido homem que lhe abordara mais cedo.

Não conseguia imaginar nada, todavia, tudo o que sabia era o que ele havia lhe dito antes, e ela lhe viu tão de perto, ele lhe disse tanto, e não sabia nada sobre ele.

Estava por demais entertida em criar vidas que não existiam.

Se ele lhe falava daquele jeito sem rodeios, deveria ser também sem rodeios para revelar-se. Mas, como quase toda uma vida, ele lhe passara por suas janelas azuis, e só Carolina não vira.

It's so easy to laugh
It's so easy to hate
It takes guts to be gentle and kind
Over, over
Love is Natural and Real
But not for you, my love
Not tonight, my love
(I Know It's Over - The Smiths)
FIM.

Mudei o título, viram que loucura? Mas esse "E passeia sozinha pelo aeroporto" era provisório, porque eu não tinha um título concreto. Pus porque foi dessa frase, da música "Teu Inglês" da bada Fellini, que eu tirei a idéia central. Só que tendo terminado, vejo que "Carolina" combina mais, porque eu sempre achei que a música merecia ter um conto, e essa é minha modesta homenagem à essa música tão linda do Chico Buarque.

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