* Uma continuação para o conto "Querido Qualquer Coisa".
Helena lhe chapou aquele beijo no canto da boca enquanto mantinha seus olhos fechados usando suas mãos finas e macias. Ela, com seu gesto inesperado, rompeu mais uma barreira que separava os dois, antes distantes por sete andares e três quarteirões, e agora com os lábios rosados dela a roçarem o canto dos seus, querendo mandar para o inferno toda e qualquer distância que ainda havia ali. Mas fora ele quem começara com essa história de romper barreiras e superar distâncias – físicas, ou não - , quando bateu a sua porta na madrugada de sábado, implorando por um espaço em seu tapete felpudo e um sorriso nervoso dela para que pudesse dormir melhor. Ninguém aparece na casa de outro alguém desse jeito, sem avisar, com essa cara de pau toda. Só se fossem amigos muito próximos e ainda assim seria estranho. Contudo, eles não eram amigos e aquilo não fora estranho, já que ela com toda calma do mundo – depois de se certificar de que ele não fora assaltado – abrira as portas de sua casa e lhe oferecera, além do espaço no tapete, uma maratona dos Flintstones, uma taça de vinho e agora um quase-beijo-na-boca.
Ela disse aos sussurros para que ele abrisse os olhos somente depois de contar até cinqüenta bem devagar. Ele procurou a lógica em sua declaração, pensou no que ela poderia estar pensando ou aprontando, e seria mentira se ele dissesse que não pensou em uma situação em que envolvia Helena metida em qualquer coisa de renda preta, mas era só pensar em suas meias com sapos alados e sorridentes para ter certeza que ali cabia tudo, menos uma cinta-liga. E se sentiu feliz por isso, quase satisfeito, porque o pijama improvisado e divertido fazia com que ela fosse quem ela realmente era, e nada era tão encantador e – por que não sensual? – quanto aquilo, nem toda a renda francesa do mundo, seja ela preta, vermelha ou multicor.
Seus devaneios duraram mais de 50 segundos vagarosos, e ele então abriu os olhos e ela não estava mais ali. Levantou-se do tapete, olhou ao seu redor, se enfiou na cozinha e só viu as duas taças de vinho, que fez questão de lavar. Se perguntando o quão errado seria um hóspede inesperado ir adentrando assim pelo apartamento, foi na surdina avançando pelo corredor. Na última porta havia um bilhete escrito à tinta verde limão – a mesma da caneta que prendiam os cachos castanhos de Helena: “Eu sou dessas idiotas que fazem as loucuras que querem e não tem coragem de encarar a vida depois. Por favor, entenda o que eu estou dizendo. No armário do corredor, terceira porta, você vai encontrar um jogo de lençóis e tem uma manta em alguma das portas. Vai esfriar. Cubra o sofá, durma e me desculpe por ser uma anfitriã tão desassossegada. Boa noite.”
Bernardo abriu o armário, encontrou três jogos de lençóis diferentes, um amarelo, um lilás e um cor-de-rosa. Escolheu o amarelo, passou os dedos pelo algodão macio de estampa floral e não resistiu à tentação de cheirá-lo. Essência de lavanda, como tudo naquela casa, exceto Helena, que cheirava a lavanda, sabonete infantil e mais alguma coisa que ele não podia definir, essa alguma coisa que fazia do cheiro dela único.
Ajeitou o sofá, tirou a camisa e ficou apenas com a camiseta branca que estava por baixo. Muitos minutos se passaram, e ele ainda podia sentir aquela energia que parecia vibrar em todas as coisas ao seu redor quando estava próximo a ela. Energia no sentido menos hippie da coisa. Energia que o fizera se levantar e abrir silenciosamente a porta do quarto no fim do corredor, e sorrir diante daquele ambiente amarelo com motivos florais, cujo chão era tomado por uma infinidade de sapatos, e havia uma pilha de livros ao pé da cama, um gato gordo dormindo dentro de um casado marrom e muitas fotos pregadas na parede, de uma Helena na fazenda com uma menina muito parecida com ela só que mais branca e do cabelo mais preto, de uma Helena criança com cara emburrada debaixo de uma árvore, de uma Helena em Paris, de uma Helena em uma festa fantasiada de Bela abraçada a uma Helena mais branca de cabelo mais preto vestida de Branca-de-Neve e era tanta Helena em todo lugar que ele quase perdera o equilíbrio de tanto encantamento ao se deparar com a Helena de verdade deitada na cama dormindo, a garota do pijama engraçado, dos beijos cegos, dos discos de jazz e dos sapos alados. Fechou a porta, voltou ao sofá, e pelo resto da noite a casa se inundou com aquela energia cheirando a lavanda que se desprendia dos lençóis amarelos que cobriam o cara que dormia sorrindo.
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