Estava com meu pai num restaurante e pela janela vimos um homem colocar um bebê dentro do porta-malas do carro. Tivemos os mesmos 30 segundos de susto, você tá vendo o que eu tô vendo?, mas logo veio o entendimento: lógico, ele vai só trocar a fralda da criança. Claro. Que loucos que somos. Risos.
"Esse aí é herói, viu, tem o meu respeito", meu pai disse. Eu, com minha faca sempre na bota, direto do meu palanquinho de indignação, respondi direto: uai, herói por quê? Por fazer o papel dele?
Meio ofendido e meio fazendo graça, papai começou a falar que ele sempre achou que pai tinha que participar, e que ele sempre fez questão de se fazer presente na minha criação. É verdade. Meu pai sempre foi pai herói, desses que viram personagem em matéria de dia dos pais. Quando eu nasci, minha mãe dava aula à noite e quando ela voltou a trabalhar meu pai ficava comigo, sozinho. E eu chorava. Chorava, chorava, chorava. Ele me deixava abrir todas as gavetas da cômoda e tirar tudo que tinha lá dentro, várias vezes por noite. Me levava pra andar de carro. Chorava junto, até, mas aguentava o tranco. Quando meus pais se separaram, continuei vendo meu pai todos os dias, e mesmo agora, quando já não sobra tempo pra nos vermos tanto, ele saiu do trabalho no meio da tarde pra estar na minha banca de TCC, e um dia nem foi trabalhar pra me ajudar com o livro.
Meu pai não leva meu feminismo muito a sério, e uma vez perguntou, meio brincando e meio sério, se eu estava me tornando dessas que levanta bandeiras, como se isso fosse algo ruim. O que ele talvez não saiba é que ele é responsável por várias dessas bandeiras, por ter me criado de uma forma que eu me sentisse completa, amada e amável, segura de mim, do meu corpo e do meu valor - e com vontade de brigar por um mundo em que todas as mulheres possam se sentir assim também, daí as bandeiras.
Eu reconheço tudo que meu pai faz e sempre fez por mim, agradeço a Deus todos os dias por ele, por isso. Mas, ao mesmo tempo, fico pensando: não é assim que tem que ser? Não devia ser privilégio ou exceção ser filha de alguém presente - física e emocionalmente. Afinal, uma mãe que faz tudo isso nunca faz mais que a obrigação. Mãe é mãe. Quem pariu Mateus que o embale.
Mas pera: se Mateus (?) foi parido, é porque ele foi feito. E filho nenhum se faz sozinho.
As pessoas reconhecem, amam e agradecem às suas mães por tudo que elas fazem, mas mães maravilhosas são aquilo que é esperado pela sociedade. É o ~mínimo~ que se espera. "Conheça a história da incrível mãe que trabalha fora e não perde uma apresentação de balé da filha", já viu isso ser manchete em algum lugar? Mas da mãe que não tem tempo de buscar os filhos na escola porque está trabalhando todo mundo fala, todo mundo lembra.
Aos pais toda falha e ausência é perdoada. Talvez perdoada seja uma palavra muito forte, mas as pessoas aceitam. Talvez é até o que se espera deles, diria a turma do é-assim-que-as-coisas-são. Afinal, é homem, né? Homem não nasceu pra cuidar da criança. Homem não tem mesmo que ficar correndo atrás de menino. Onde já se viu, homem dando banho nas crianças? Comida na boca? Deus me livre, imagina a confusão se o homem for pentear o cabelo da filha! Colocando comida na mesa já tá tudo certo, o resto a mãe dá conta e ele ajuda de vez em quando, quando precisa. Bom demais.
Pai ausente vira herói se um dia acorda fazendo o mínimo, mas se a é mãe que decide ir ali comprar cigarros, pode ser que ela volte, pode ser que ela só tenha mesmo ido ali na esquina e se demorado, pode ser que ela volte correndo. Não importa. Ninguém esquece. Não que eu esteja lutando pelo ~privilégio~ de poder abandonar um filho por aí, só estou questionando o duplo padrão. Sempre ele. Vocês entenderam.
Aliás, questiono muito também nossa cultura de celebrar as pessoas por serem minimamente decentes. Tipo político que adora bater no peito e dizer que não é corrupto. Parabéns? Não sou racista, não sou homofóbico, não chuto cachorro. Que legal, colega, quer uma estrela dourada do lado do seu nome? É o mínimo que a gente tem que esperar de qualquer pessoa. Cuido do filho que fiz. Arrasou campeão?
De novo, não acho que o caminho seja minimizar os feitos e sacrifícios dos nossos pais. Meu pai é, sim, meu herói, mas não queria que ele fosse visto como herói pelos outros, porque isso significa que homens como ele ainda são exceção, quando devia ser regra. Homens como ele, quando vão até o carro trocar a fralda das crianças, passam primeiro por psicopatas e depois por pais. Mais fácil o cara estar sequestrando um bebê do que improvisando um trocador. Isso não é muito, muito triste?
Esse post não tem conclusão, é só um apanhado de questões que me surgem sempre que penso na minha relação com meu pai. Porque eu lembro que nem todos são iguais a ele, e tem algo de muito errado num mundo assim. Não acho que todos os pais ausentes (seja física, emocional ou financeiramente) sejam pessoas necessariamente ruins, muito menos maus pais: vivemos num mundo onde se exige muito pouco deles. É normal. Não devia, mas é.
Se for pra falar de heroísmo, que se fale então dos dois, pais e mães, de sangue ou não, e todas as pessoas que dão o seu melhor pra criar seres humanos bons, numa esperança de que o mundo tenha mais gente bacana. Acho que a situação no presente é melhor do que no passado, e quanto mais falarmos nisso, mais pais conscientes do seu papel de verdade vão vir por aí.
Pelo menos é o que eu espero, porque eu quero muito ter filho e não vou me contentar com nada menos do que um pai como foi e é o meu pra mim.
"O que ele talvez não saiba é que ele é responsável por várias dessas bandeiras, por ter me criado de uma forma que eu me sentisse completa, amada e amável, segura de mim, do meu corpo e do meu valor - e com vontade de brigar por um mundo em que todas as mulheres possam se sentir assim também" = é exatamente esse o meu sentimento a respeito do meu pai quando conversamos sobre feminismo. Ele me criou para ser uma pessoa aberta, me ensinou desde pequena as histórias de mulheres fortes que assumiram o controle de suas vidas - e até de países, muitas vezes.
ResponderExcluirMas ele não é um herói por isso. Ele foi PAI. E isso pode causar espanto nas pessoas porque nem todo o pai age assim. Mas deveria. Pai não é apenas o que contribui geneticamente, mas o que cuida, educa, ensina, dá bronca, participa ativamente.
Das questões que.
Anna, se eu pudesse tirar print de uma conversa que tive a uma hora atrás, eu tirava e colava aqui. Porque eu falei exatamente isso: quando o pai faz algo normal, ele é herói, quando é a mãe que faz, ela não tá fazendo mais que a obrigação.
ResponderExcluirIsso é tão errado que nem sei. Eu espero que se um dia eu casar e tiver filhos, coisas que hoje eu nem imagino nem quero, o cara saiba que quando ele estiver limpando o banheiro da casa ou dando banho no filho ele não vai estar ME ajudando, e sim fazendo nada mais que a parte dele. Porque oras, eu não sou obrigada a fazer tudo sozinha, não é o meu papel fazer tudo sozinha. E, olha, todos sabemos que eu não fiz o filho sozinha.
Beijos!
Ooops, esqueci de comentar: te indiquei num memezão lá no blog. Hehe.
ExcluirBeijos!
Ai amiga, que texto ótimo. Vamos sentar e nos abraçar porque concordo totalmente. Não entendo essa dinâmica do "meu marido me ajuda tanto com o bebê". Fico WTF ele tem tanta obrigação quanto você gata!!!!111
ResponderExcluirMeu pai nunca trocou uma fralda - e é meu herói mesmo assim, porque we accept the love we think we deserve and stuff like that - mas meu marido vai ser mais pros meus filhos. Porque eu espero que a essa altura geracional em que estamos eles já entenderam que NÃO é só nosso - e se não entendeu vai ser MUITO bem educado antes de entrar na brincadeira, né?
Te amo muito!
Aff, amiga, posso imprimir esse texto e sair distribuindo por aí? Eu não tive um pai exemplar, você sabe, e apesar de ser sempre muito carinhoso comigo, ninguém nunca veio com esse papo de que nossa, pai herói. Não. Não era. Não foi. Não vai ser. E não seria mesmo que estivesse mais presente, que tivesse ajudado mais a minha mãe, que tive participado mais. Acho que tem toda uma questão cultural envolvida, mas já tá bem na hora das pessoas pensarem um pouquinho que pai participar e se prontificar a ajudar não é nada mais do que a obrigação do cara. Não tive a sorte de ter um assim na minha vida, mas ganhei um padrasto e espero que, se um dia eu tiver filhos, eles tenham mais sorte que eu.
ResponderExcluirte amo <3
Você, volta e meia, mais frequentemente do que pode parecer, escreve textos que eu penso que poderia ter escrito. Amiga, eu concordo em absolutamente tudo. Acho triste que a mulher tenha que ser mãe presente e trabalhar de maneira integral, fora + em casa, e a sociedade veja isso como "mera obrigação", enquanto qualquer homem ganha medalhas de ouro por, sei lá, buscarem a filha na aula de dança vez ou outra. A dupla jornada feminina é cruelmente ignorada, raramente (ou nunca) aplaudida, enquanto a do homem, que é tão RARA, ganha mil estrelas quando aparece. Triste.
ResponderExcluirTe amo!
Beijo <3
Amiga, concordo muito, muito, muito. Tenho várias amigas, casadas, que tiveram filhos com seus maridos, e esse maridos, que são pais, não fazem nada. Quando fazem é uma festa! "Carlos (?) hoje deu banho e trocou DUAS fraldas! É um herói". Sejem menas?
ResponderExcluirEu sou otimista e acho que a sociedade está aos poucos começando a botar os pais nos seus devidos lugares, sei la, espero que sim pelo menos.
Beijos <3
Nossa, amiga, sentiu meu abraço daí? Eu fico pra morrer quando vêm com essa história de "é um paizão" porque fazem nada mais, nada menos, do que CUIDAR DOS FILHOS QUE FIZERAM. Brotheeer, por favooooor, me poupeeeeem.
ResponderExcluirOutra coisa é que nossos pais nos criaram com mentalidades feministas. Desde que me entendo por gente eu ouço que eu tenho que estudar, tenho que ter uma carreira, não tenho que depender de homem nenhum. Mas não querem viver em um mundo onde isso seja a regra. E aí a gente cresce e eles esperam que a gente se encaixe nos padrões sociais do século passado. Me poupem.
Amo você <3