terça-feira, 17 de agosto de 2010

Não se vê mais amor como nos tempos do cólera

"Talvez o que me compete seja justamente diagnosticar a completa inexistência do romance, ou constatar que trata-se de um bobo conceito hipotético. Uma ideia que nos inspira, que nos motiva, que nos estufa o peito através de um brusco sopro do mais puro nada. Uma isca que nós, mesmo após fisgados sucessivas vezes, seguimos mordendo, constantemente e com convicção. (...)"
"... ou não." - Lucas Silveira

Nesse fim de férias me vi envolvida no delicioso romance entre Florentino Ariza e Fermina Daza, do livro O Amor nos Tempos do Cólera, que além de contar uma ótima história nos conquista completamente devido a prosa fluida e agradável de ser lida de Gabriel García Márquez, que nesse primeiro contato nosso já me pôs a certeza que tem tudo para virar um dos meus escritores favoritos. Mas não é do livro em si que quero falar hoje, e sim do que ele me fez pensar.

Hoje em dia as coisas são, teoricamente, fáceis demais. Não existem mais obstáculos intransponíveis, famílias arqui-rivais, fugas secretas para o leste ou qualquer outra tragédia para separar os amantes. As coisas funcionam numa simplicidade tão assustadora que basta juntar a fome com a vontade de comer para que seja satisfeito o apetite, sem explicações, sem constrangimentos, compromissos, mãos dadas e telefonemas no dia seguinte. Simples assim.

Entretanto, tenho comigo que todas essas coisas acontecendo na velocidade da luz, avançando sinais e ignorando placas de "mais devagar" tem feito das pessoas mais bobas, inseguras e medrosas. Na falta de obstáculos que a vida e as convenções sociais (sempre elas!) nos impõe, temos uma necessidade crônica de tornar as coisas mais complicadas do que são de fato. Fugimos do compromisso, mas sonhamos com cafés da manhã na cama e almoços de domingo; odiamos rótulos, mas não queremos ver nossos digníssimos olhando para os lados. O medo do desapontamento e da desilusão é tão enorme que ficamos de pés e mãos atadas por umas prerrogativas que não fazem o menor sentido e que fazemos questão de enfeitá-las com filosofias de vida modernas e prafrentex só para fugir do fato de que, por dentro, ainda somos crianças assustadas morrendo de medo de dar o braço a torcer, de saltar sem saber o que nos espera ali embaixo.

"Pois mesmo vinte braças debaixo da terra teria reconhecido de pronto aquela voz de metais surdos que carregava na alma desde a tarde em que a ouviu dizer no tapete de folhas amarelas de um parque solitário 'Agora vá embora e não volte até que eu lhe avise.' Sabia que estava sentada no assento atrás do seu, junto do esposo inevitável, e percebia sua respiração cálida e bem medida, e aspirava com amor o ar purificado pela boa saúde do seu alento. (...)Deleitava-se com os hálitos do perfume de amêndoas que lhe chegava vindo da intimidade dela, ansioso por saber como achava ela que deviam se apaixonar as mulheres do cinema para que seus amores doessem menos que os da vida. Pouco antes do final, num clarão de júbilo, percebeu de repente que nunca estivera tanto tempo tão perto de alguém que amava tanto."
"O Amor Nos Tempos do Cólera" - Gabriel García Márquez

Florentino Ariza amou Fermina Daza na primeira vez que botou os olhos nela. Era feio e triste, mas todo amor e jurou que esperaria por ela mesmo quando ela viajou para longe a mando do pai, mesmo quando a única certeza que ele tinha eram cartas, mesmo quando até as cartas sumiram e ela se casou com o homem mais ilustre da cidade e ele continuava sendo o jovem com cara de velho com seu chapéu funebre e guarda-chuva de vampiro. Ele esperaria por ela e a amaria até o dia em que o marido rival morresse, ou que se desse seu próprio último suspiro. E para não dizer que isso são romances de livros, meus avós namoraram escondidos por bilhetes que iam passando por milhares de mãos de colegas de escola prestativos, até o dia que ele viu que podia dar a ela um futuro que lhe fosse digno, e foi lhe pedir a mão em casamento a meu bisavô.


"E se existe essa centelha quase palpável, essa esperança intensa que chamamos de amor, então não há nada mais sensato a fazer do que soltarmos as mãos dos trapézios, perdermos a frágil segurança de nossas solidões e nos enlaçarmos em pleno ar. Talvez nos esborrachemos. Talvez saiamos voando. Não temos como saber se vai dar certo - o verdadeiro encontro se dá ao tirarmos os pés do chão -, mas a vida não tem nenhum sentido se não for para dar o salto."
"O Salto" - Antonio Prata


E aí vamos ficar dando uma de maricas diante da nossa própria felicidade ao invés de correr o risco? Pode dar certo, como pode não dar também e a gente saia dessa história com um coração partido em mil pedaços, com histórias trágicas para contar e passemos semanas ouvindo Chico Buarque como se o sol nunca mais fosse nascer. Mas ele nasce, um dia há de nascer, e se a gente der esse empurrão para a vida, teremos nossos cafés da manhã na cama e almoços de domingo.

25 comentários:

  1. Adorei o texto, e nem preciso falar que eu concordo com tudo né? Essa coisa de ser tudo moderno nos relacionamentos, não me cai nem um pouco. Achei lindos todos os trechos que você citou, me deu vontade de ler esse livro, deve ser lindo. E quando a história do seu avê, a coisa mais fofa, quero um igual pra mim haha.
    Beijos

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  2. Ah...! Que linda a sua reflexão, Anna! Realmente muitas coisas nos dão medo e, em sua maioria, é infundado mesmo!
    Também acho que a modernidade trouxe essa coisa de satisfação imediata, que não pode esperar e é raro encontrar hoje em dia alguém que acredite que 'quem espera sempre alcança'! Muitas vezes as pessoas pulam de um galho pra outro incessantemente, sem ter a noção de que é bom esperar...! E quando a gente espera, a recompensa é sempre maior mesmo, como os cafés da manhã e almoços no domingo!
    ^^
    Beijos querida!

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  3. Poxa! Já tinha uma enorme vontade de ler este livro... Agora, então estou sedenta por ele! :)

    Gostei da reflexão.
    Realmente é difícil se dar por inteiro para alguém que, como nós, vive numa sociedade da superficialidade, sem grandes envolvimentos afetivos. É preciso ter muito amor para poder dá-lo... Ou recebê-lo em grande quantidade ;)

    beijinhos :*

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  4. Eu queria ter coragem de correr mais riscos, mas sou insegura demais pra isso. Espero que um dia eu consiga transpor essa barreira e ser, de fato, essa pessoa que sempre mostro pros outros que sou...

    Bom, não tenho muito mais a acrescentar, só que admiro muito sua escrita e quando crescer quero escrever bem que nem você =P

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  5. É um reflexão cheia de verdades, Anna!
    Precisamos dar uma freada com isso tudo, porque quando menos esperamos estamos preparados de verdade e numa grande surpresa, temos nossos cafés da manhã na cama e almoços de domingo.
    Beijo

    ps: que coisa linda seus avós! *-*

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  6. Que lindo, Anna! Eu também sou assim, quando leio algum livro interessante, saio relacionando com experiências, pensamentos, outros textos... Adorei seu post.
    Acredita que estou com esse livro do Gabo faz quase dois anos e ainda não li? Vou mudar isso rapidinho.

    Beijos :*

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  7. Nunca sei o que deo pensar do amor e me vendo aos amantes vários que me queiram. Ando mendingando amor. Desejando todas as difiuldades e convenções sociais possiveis. Nada que seja fogo de palha, amor que seja constante, apenas. E dificil.
    Mas sempre quero demais.

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  8. Nem preciso dizer o quanto seu texto é lindo né?
    Eu sempre quis comprar esse livro, mas na cidade da limitação dá até um desanimo sair a procura.
    E poxa, era tão bonito essa coisa do proibido, de ter que correr riscos, e se limitar a pequenos gestos. O amor real está em falta mesmo :_
    Um beijo Anna.

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  9. Ótimo texto Anna!
    Acabei de postar algo que tem até relação com essa "falta de romantismo". Passa lá depois para ver.
    Gabriel Garcia Marquez é bom mesmo. Não li esse livro ainda, mas já li Memórias de minhas putas tristes. Bom também, já leu?
    Bjitos!

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  10. Nossa, não tem como dizer o quanto eu me identifiquei. Lindo texto, Anna, como sempre!

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  11. Oi Anna!
    Oh, o seu post ficou otimo e as citacoes que vc colocou tb.
    Tenho que concordar que hoje em dia, as coisas estao cada vez mais precoces! e o amor, nem sempre eh amor..
    MAS.. eu sou um exemplo de que o amor e romantismo ainda existem sim!
    Pelo menos eu passei e passo por isso ainda (e se Deus quiser, sempre!); claro que nada eh 100% BOM-MARAVILHOSO-BORBOLETAS_NO_ESTOMAGO SEMPRE, mas isso tb faz parte e eh mto bom.
    Eu passei por dificuldades, por sofrimentos e finalmente por realizacoes e felicidades com o meu amor; teve meio que uma batalha e tudo comecou com olhares que sentiram saudade (pois ja nos conheciamos, nos separamos e dps nos encontramos de novo)..
    Enfim, o que eu quero dizer, eh que amor verdadeiro-romance e sentir as coisas de fato, ainda existem sim! so nao sao tao faceis de encontrar, mas nao custa procurar neh? (com moderacao claro).
    Como todo mundo anda colocando "tudo facil demais"... vixe, sera q deu pra entender alguma coisa?
    Eu so sinto mto pra quem nao acredita q esse amor possa vir e saia "quebrando a cara" por ae.. ou por quem nao vive por medo!
    Eu sou como seus avos e espero que todo mundo seja e passe por isso! tenho certeza que passarao ;)

    Beijos e desculpa o comment-post.

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  12. Aaaah Gabriel García Marquez, amor da minha vida! <3 ele + a clarice, o jorge amado e o milan kundera, of course.
    Adicione-o sim à sua lista de amores, Anna! Recomendo total! 100 anos de solidão, óbvio, mas Memórias de minhas putas tristes também. É de uma fofura maior do que o substantivo ali inspira.

    Eu vivo pro amor e dou a cara a tapa quando se trata dele.
    Beijos!

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  13. Concordo absolutamente com cada palavra escrita. Tenho arrepios quando fico perto de pessoas covardes, me sinto inquieta ao ver que hoje ninguém mais quer por o pescoço à prova... Arriscar, isso que deveríamos fazer, todos os dias.
    Ótimo texto :) Beijos.

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  14. Anna, seu post é terapêutico! Eu estava precisando ler alguma coisa assim. Gostei muito das citações - especialmente a do Prata.
    Tem sido cada vez mais difícil ter coragem de correr o risco... seu texto ficou lindo.
    beijos!
    PS: leia travessuras da menina má.

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  15. Muito interessante sua forma de relacionar o que leu com o que pensa. Eu concordo que gostaria de café-da-manhã e aqueles frufrus tds. Maaaaas hoje não tem mais tempo para isso, acredito que não existe mais isso.
    Tudo prático.
    Beijos

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  16. Estou namorando por emails e por telefone e te juro que deu até um ânimo essa história que você contou dos seus avós!

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  17. acho que vou ler esse livro.
    li 'cem anos de solidão' e gostei muito do Garcia.

    bjo ;*

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  18. "As coisas funcionam numa simplicidade tão assustadora que basta juntar a fome com a vontade de comer para que seja satisfeito o apetite, sem explicações, sem constrangimentos, compromissos, mãos dadas e telefonemas no dia seguinte. Simples assim."


    como eu queria que fosse simples assim.
    eu acho que existem amores assim ainda. Acho de verdade. o problema não é esse amor que falta, ou a dificuldade que falta, acho que falta é disposição para se ter e viver um grande amor à qualquer custo.
    o amor ficou banal demais pra ser singular.

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  19. Não sabia que éramos da mesma cidade.
    Interessante.

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  20. Sinto falta do romance Romeu & Julieta também. Por mais que queiramos desenterrar o já consagrado (criando Edwards & Bellas, por exemplo), não será a mesma coisa.

    Já viu a nova publicidade da Natura? Fala do amor simples, do cotidiano em casal e do movimento do sentimento. É a coisa mais sincera que eu já vi: http://www.youtube.com/watch?v=dLXWQIdPORw

    Eu concordo porque meu amor é assim. E (para mim) é o melhor amor do mundo.

    Beijo!

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  21. Depois deste, quero ver o que você escreverá após a leitura de "Ninguém escreve ao coronel". Anota aí, hein?
    Bjoo!!

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  22. Adorei o post, adorei os trechos e adorei o seu avô, haha. Concordo muito com você. Hoje tudo acontece muito rápido e as pessoas acabam colocando barreiras onde não existem.
    Fiquei com uma vontade imensa de ler esse livro.
    Beijos!

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  23. "o medo corrói a alma", já dizia o meu braço.
    enfim, o importante é não ter medo, não importa quais sejam as suas convicções.

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  24. Gabriel Gárcia Marquez parece muito bom realmente. Há uns dias mesmo me recomendaram ele...
    Eu acho que se a paixão for válida (qro dizer, se for uma relação mais firme, não aquelas paixonites) vale muito a pena você correr atrás e enfrentar os "obstáculos" de hoje em dia, que nem as convenções sociais (que aparentemente são o novo "rivalidade entre famílias"). Porque tem vazios que só o amor preenche né, não tem escapatória. :P

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  25. Amei amei amei, Anna! O salto é a minha crônica predileta do Antônio, e pretendo ler esse livro que você citou... Eu sempre fui insegura e tudo como você disse, até que um dia chegou o ponto final e eu percebi que meu único arrependimento era os momentos em que eu não tinha mergulhado de cabeça! Depois, nós voltamos, e concordo com o seu texto: É preciso amar exageradamente, e esperar cafés na cama e almoços de domingo.

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